por Alex Palhano*
“Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo” (Rilke)
A conversa parecia de mesa de bar. Mas ali tudo só parecia, não era. No lugar da mesa e de gente sentada em volta de um quadrado instalados estavam um balcão longo, um sujeito sozinho e um barman atento, longe e duplamente solitário, também. E eu?! Ouvindo inevitavelmente a conversa alheia com minhas doses duplas de uísque.
A cada palavra lançada, um gole descia minha goela abaixo só pra eu ficar em silêncio. E, contra a lei da gravidade, as doses não caiam: subiam direto para mente e se misturavam aos meus pensamentos perdidos. Era eu quem caia em mim, como sempre. Sabe aqueles momentos em que você entra em si mesmo e não encontra ninguém? Então.
Enquanto voltava do meu tour íntimo, lá da ponta do balcão o sujeito bonito e triste, com ar de sabedoria absoluta e imatura, murmurava para si e para quem ouvido tivesse: “Se todos saírem por aí criando as próprias regras, como saber qual a verdadeira? Não há nada em que se apoiar”. E ficou lá: ele, a bebida, o cigarro que não podia fumar e sua verdade de pedra, como a solidão quando quer fazer seus alicerces dentro da gente.
Tomei meu uísque de vez; só e num gole. Pedi outra dose. A essa altura (e eu não estava “alto”, só seco) já havia criado meu muro, minha muralha da China enormeeeee; como se nã fosse pular fácil, como sempre faço vez ou outra, num salto lançado sob o chão de ilusão e cimento… Quem sabe? Estava só me protegendo nem sei do quê, acreditava eu.
O barman reagiu do nada e com tudo. Como se não houvesse plateia, e, sem palco, entrou em cena. Pediu licença para se mostrar educado, ou por pura prática, talvez. Queria falar algo. Levantei a cabeça. O outro, do lado de lá e de lado nenhum, disse: “fale, por favor”.
De repente, o barman aparentava mais alto do que se tinha notado e não estava tão sozinho quanto parecia se sentir antes; ou como o havia sentido, claro (como disse, ali tudo era uma imagem do que não era). E começou: “Uma noite dividi minha pele de cigarra, devorei suas folhas sem conhecer venenos, nenhuma regra de nutrição. Naquela cegueira dissimulada um desejo finalmente verdadeiro”. E pronto. Calou-se e foi preparar outro dry martini enquanto os queixos do balcão foram ao chão. O impacto da queda foi um silêncio insuportável e afiado.
Fiquei tonto. Falei pra mim mesmo com os olhos gritando e com o juízo ardendo: volta aqui, cara. Conversa comigo. Logo agora que havia começado a beber e a devorar pensamentos que nem eram os meus… Pode voltar! Tive vontade de saber mais, ouvir mais. Desejei aquilo escrito, eternizado num guardanapo de papel. Mas o outro-lado-de-lado-nenhum se antecipou: “De quem é esse poema? De quem é isso?” E, mais uma vez sozinho, de volta a si, o barman respondeu: “É meu. Fiz numa noite em que estava do seu mesmo lado do balcão”. E entregou o dry, impecavelmente seco.
Aí, pronto: nem sabia mais de mim. Pedi a conta. Aquela cena, as palavras do barman, o cigarro que não fumei, o uísque e a solidão (feita agora de carne e silêncio) iriam me levar de volta pra casa, pronto para mais uma noite de insônia sob o efeito do peso da vida. Estava vivo como um peixe fora do aquário…
Lá estava eu amando as minhas próprias respostas. Já havia amado as perguntas, como quartos fechados ou como livros feitos em língua estrangeira: não investiguei as respostas porque não podiam ser me dadas, porque não poderia vivê-las. E é disso que estou falando, de viver tudo. Eu vivo agora as respostas.
*Alex Palhano, jornalista, cronista e filósofo de bar