por Drauzio Varella
É a primeira vez que a doença se dissemina num país continental, com tantas diferenças quanto o nosso
Enquanto o coronavírus se espalhava pela China, o mundo avaliou mal a gravidade da epidemia. Hoje, sabemos que os números divulgados pelos chineses subestimaram a magnitude do problema.
Há uma semana, Peter Doherty, que recebeu o Nobel de Medicina em 1996 por desvendar os mecanismos imunológicos na defesa contra os vírus, declarou ao jornalista Álvaro Pereira Júnior, no Fantástico, ter sido muito otimista no início da epidemia chinesa.
Eu me recrimino por ter compartilhado desse otimismo. Só fomos entender as dimensões da pandemia em meados de fevereiro, quando as UTIs dos hospitais da Itália ficaram abarrotadas de doentes com insuficiência respiratória.
O mundo estava tão despreparado que houve uma passeata com 200 mil pessoas pelas ruas de Madri, no mesmo dia em que os italianos decretavam o isolamento social.
Salvo raras exceções, o restante da Europa desenvolvida demorou a entender o alcance e as consequências da epidemia. Poupados por algumas semanas, os Estados Unidos não agiram melhor. O país mais rico do mundo tem mais mortes do que os outros porque foi surpreendido sem máscaras cirúrgicas, luvas e ventiladores mecânicos nem sequer para as necessidades básicas. Nova York assiste ao drama dos hospitais lotados, com caminhões frigoríficos estacionados à porta.
E o Brasil? Não sabemos exatamente, porque a experiência alheia nos é de pouca valia. É a primeira vez que esse coronavírus se dissemina num país continental, com tantas desigualdades sociais e regionais quanto o nosso.
Quando analiso a evolução da epidemia brasileira, no entanto, não consigo deixar de ser pessimista. Sem testar todos os doentes, dá para confiar nos números oficiais de infectados e mortos? Na verdade, estamos enfrentando no escuro uma tragédia de dimensões imprevisíveis.
Duas semanas atrás, alguém imaginava que Manaus seria a primeira cidade em colapso? Lá, as UTIs estão lotadas, faltam respiradores, equipamentos de proteção individual, médicos, fisioterapeutas e enfermagem com experiência em terapia intensiva. Os pacientes perambulam por unidades de saúde e prontos-socorros sem possibilidade de atendê-los, os enterros acontecem em valas coletivas.
O drama manauara não será exclusivo dos amazonenses. Estão próximos do limite de disponibilidade de leitos e ventiladores Belém, Fortaleza, Recife, Macapá, os hospitais públicos do Rio de Janeiro e até de São Paulo, cidade em que o SUS está mais bem estruturado.
A menos que a epidemia brasileira dê uma reviravolta para seguir trajetória diametralmente oposta à de todos os lugares por onde se alastrou, nosso sofrimento está longe de acabar.
Há quanto tempo sofrem italianos, espanhóis, britânicos, americanos e os próprios chineses, povos que viram a pandemia se instalar várias semanas antes de desembarcar aqui? O melhor que conseguiremos fazer a partir de agora será apagar os incêndios que se espalharão pelas cidades brasileiras.
Vamos pagar a conta da ausência de políticas públicas, do absurdo de 13 ministros da Saúde nos últimos dez anos, dos estádios construídos para a Copa agora transformados em hospitais de campanha, da desídia e do desrespeito com a organização e financiamento do SUS, da naturalidade com que aceitamos viver no meio de tamanha desigualdade social e, ainda, da irresponsabilidade que nos levou a criar um sistema penitenciário com cerca de 800 mil presos, o terceiro mais populoso do mundo.
Nos Estados Unidos, campeões mundiais de aprisionamento, as penitenciárias se tornaram os maiores focos de disseminação do vírus para a sociedade. Aqui, com cadeias em que as celas contêm pelo menos duas a três vezes mais ocupantes do que a capacidade máxima, vai ser melhor?
Não será possível enfrentar a epidemia mais perigosa dos últimos cem anos com a sabedoria dos avestruzes.
*Publicado na Folha de S.Paulo
Num Pais de tantas desigualdades,os pobres estão como sempre pagando com os mortos,ricos tem testes rápidos e se curam na maioria da doença,já os pobres estão morrendo até pela falta de remédios nos hospitais.