por Thea Tavares
“Quando tudo está perdido na vida.
Só quando tudo está perdido na vida é que a gente descobre:
que na vida nunca tudo está perdido”.
(Zé Geraldo).
Alguém ainda vai imitar o grande García Márquez e compilar numa única obra os “causos” do amor nos tempos da COVID-19. Inúmeras histórias bonitas de se contar, tristes também, claro, mas reais, ainda vão brotar da turbulência de sentimentos que perpassa as quarentenas e os isolamentos por aí. O distanciamento social imposto não consegue afastar as pessoas que têm um peito carente e cheio de amor para dar fervilhando por dentro, até potencializa alguns encontros que emocionam pela simplicidade, delicadeza e pela praticidade de sobreviver apenas vivenciando esses dias do jeito que dá.
Esta carta do bunker serve como missiva para todos, mas é emprestada da realidade de uma amiga, que formou um casal imaginário com um cara do qual ela se “aproximou”, digamos assim, apenas no bojo do desespero, da solidão e do medo dessa realidade imposta a eles e a todos nós. Uma parte do texto é pautada nas informações dela. A outra, pura imaginação.
Ele completou 50 anos. Ela entrou na menopausa. Por si só, essas duas condições já nos apontariam um cenário com uma gente subindo pelas paredes, se consumindo em preocupações enfáticas sobre a vida, carências e apreensões diversas, além de elucubrações sobre o que o tempo que resta ainda lhes reserva para viver. Agora, você pega tudo isso e confina em um espaço fechado, praticamente só invadido pelas notícias da pandemia lá fora, que chegam pelas ondas da TV, do rádio, pelos sinais da Internet e também pelas interações e abstrações em rede social. Este é o tamanho do drama.
“O nosso amor a gente inventa pra se distrair.
E quando acaba a gente pensa que ele nunca existiu”.
(O Nosso Amor a Gente Inventa (Estória Romântica) – Cazuza/Rogério Meanda/João Rebouças).
Nessa tragédia grega, ele percebeu um sorriso, um olhar, um nome, algumas palavras. Ela olhou na direção inversa e encontrou ideias, inteligência, senso crítico, sensibilidade, altruísmo, motivos de sobra para nutrir muita cumplicidade numa relação a dois… Daqueles dois. Todas as convenções sociais e amarras que limitariam ou adiariam a interação entre eles em “condições normais de temperatura e pressão” (CNTP), fora do ambiente desesperador da pandemia, se desfizeram no ar. No mesmo ar em que os dois flutuam, que suas almas timbram e vibram numa única frequência, apesar das velocidades e reações muito destoantes que a personalidade de cada um cultivou ao longo de suas histórias.
Eles já tinham se encontrado, se falado, precisado da ajuda um do outro antes por motivos sociais e profissionais. Até haviam se apercebido, se identificado e se interessado mútua e intuitivamente. Mas foi só. Um ser mais iluminado e esotérico evocaria conceitos como o da energia, da espiritualidade e outro, pragmático, diria que é coisa de pele, de química e da boa e velha safadeza da nossa natureza humana. Só sei dizer que no mundo real, aquele de levantar cedo, escovar os dentes, trabalhar, ir ao supermercado sem máscara, comer, dormir e pagar as contas no final do mês, a coisa não rolou. A vida sempre os afastava. O confinamento e a afinação dos seus desejos, anseios e necessidades foi o que estabeleceu a ponte imaginária.
Combinaram viver apenas o aqui e o agora: carpe diem! E, no fundo, no fundo, sabem que é esse o tempo deles, o lugar deles, o modo de funcionamento do “encontro” deles, curtido a cada momento, palavra, sorriso, sensibilidade e prazer.
“Ainda bem que me restou o seu sorriso,
que me alumia a alma, que me acalma quando é preciso.
E como eu preciso!”.
(Galho Seco – Zé Geraldo).
No utilitarismo singelo da relação que se estabeleceu, a vida segue com ternura. Os dias deles passam mais leves, suaves e dá até pra arriscar chamar de alegres. Sem pensar muito. São delicadamente criativos. A presença dela se materializou na letra de uma música que ele compôs e talvez até caiba uma citação sua nos agradecimentos da tese acadêmica do doutorado que ele faz. Quem sabe? A atenção dele virou uma musa inspiradora e companheira das suas horas, da faxina à lista de compras. Do home office aos chats com a família. Nos momentos da pintura, da leitura e do programa de TV.
Aconteça o que acontecer no mundo, esses dias ficarão eternizados na alma de um casal imaginário, cuja beleza intocável reside justamente na impossibilidade de materializar os dois quereres. Se for para a vida real, estraga. Rubem Alves diria que esse amor que os une, assim, nas circunstâncias do distanciamento social, a sete chaves, está somente dentro deles. Por isso, são amantes de suas próprias natureza e imagem. Uma afeição que vem para fortalecer, antes de mais nada, o amor próprio, a auto estima que eles tanto se deviam há décadas, esquecidos no fundo de uma gaveta com documentos amarelados. Saem para a liberdade, quando ela vier, levando na bagagem esse combustível de que a gente tanto necessita para viver e edificar nossos castelos.
“Que as palavras que falo
Não sejam ouvidas como prece,
nem repetidas com fervor,
apenas respeitadas, como a única coisa
que resta a um homem inundado de sentimentos.
Porque metade de mim é o que ouço,
mas a outra metade é o que calo”.
(Metade – Oswaldo Montenegro).
Que lindo!
Ainda existe razões para acreditar na beleza da vida e na pureza dos sentimentos humanos.
Belo e inspirador texto!
Parabéns, Thea. E por lembrar do nosso querido Rubem Alves, um grande abraço… à distância.
Fasola, eu fiquei encantada e quis contar essa história pra gente lembrar que a vida dá um jeito de se manifestar em toda e qualquer oportunidade, mesmo na adversidade. E, no caso deles, só por isso! Doido, né?
Célio, Rubem Alves é minha eterna cabeceira. Outro abraço pra aí, à distância também!