por Demétrio Magnoli
Alquimistas da nova jihad transformam remédio em metáfora de um arco narrativo ideológico
Todos os médicos podem prescrever a cloroquina para seus pacientes, com autorização deles. O Ministério da Saúde não veta o uso da substância –e também não a receita, pois, como em qualquer outro caso, não é sua função substituir o médico.
O ministério não estimula o uso indiscriminado da droga porque não se concluiu o protocolo científico de sua aprovação como medicamento para a Covid-19. Ao lado dela, pesquisas em fase inicial descortinam outras hipóteses medicamentosas prometedoras. Tudo isso parece óbvio, exceto para os fanáticos da cloroquina, que deflagraram uma “guerra cultural”.
À primeira vista, a guerra decorre da sedução do pensamento mágico. Os fanáticos da cloroquina a enxergam como cura divina, o santo graal, elixir da vida, um pote de ouro no fim do arco-íris. Mas esses são os fanáticos tolos, inocentes úteis, soldados rasos de uma guerra cujas raízes não compreendem.
Os alquimistas da nova jihad transfiguram a substância química em metáfora de um arco narrativo ideológico que nada tem a ver com medicina.
O arco estende-se da China às “elites globalistas”, com escala na OMS. Os três capítulos da narrativa são mais frequentemente difundidos como contos autônomos, mas pertencem a um romance único. Cada um apoia-se em fatos incontestáveis ou hipóteses razoáveis, que sofrem manipulações de natureza conspiratória.
1. China: o vírus emergiu em Wuhan, o regime ocultou a etapa inicial da epidemia e, para proteger o sistema de poder totalitário, provavelmente fabricou estatísticas fantasiosas que miniaturizaram as curvas de infecções e óbitos. Daí, os fanáticos da cloroquina extraem uma conspiração comunista destinada a disseminar globalmente o coronavírus, quebrando economias capitalistas para estabelecer hegemonia mundial da China.
2. OMS: a China impulsionou a escolha do etíope Tedros Adhanom para a chefia da OMS e hoje exerce influência sobre a organização similar à que os EUA e os europeus mantêm sobre o FMI e o Banco Mundial. Parceiro de um regime engajado em projetar “soft power” na África, Adhanom celebrou a “eficiência” chinesa no combate à epidemia, calando-se acerca de tudo que possa constranger Xi Jinping.
Dessa parceria os fanáticos da cloroquina extraem um complô veiculado pela OMS para amplificar a crise sanitária e desacreditar o remédio providencial.
3. “Elites globalistas”: na linguagem sectária dos fanáticos da cloroquina, a expressão engloba todas as correntes compreendidas entre o liberalismo progressista e a social-democracia, genericamente rotuladas como “socialistas”.
Tais elites, articuladas nas instituições internacionais, conduziriam um plano malévolo destinado a subjugar as nações e os capitalismos nacionais. A pandemia funcionaria como pretexto ideal para universalizar as quarentenas, solapar negócios, arrasar empresas privadas e perenizar a intervenção econômica estatal.
A guerra da cloroquina foi declarada pelos mesmos líderes políticos que, há pouco, qualificavam a Covid-19 como “gripezinha”. Agora, desmascarados, eles se reagrupam numa trincheira de comprimidos de cloroquina e armam catapultas para assediar o castelo das democracias.
Há pesquisadores sérios convencidos da eficácia da substância no tratamento da doença. Suas reputações serão mais bem servidas se contribuírem com ensaios clínicos randomizados da droga, recusando o papel de porta-vozes científicos da “guerra cultural” alheia.
Chefes do tráfico não cheiram pó, curandeiros confiam sua própria saúde aos médicos, astrólogos profissionais não planejam suas vidas a partir de mapas astrais.
Os fabricantes da conspiração sem fronteiras –que abrange a China, a OMS, a União Europeia, o Partido Democrata, o STF, Maia, Doria, Mandetta e a maldita imprensa– vendem deliberadamente um produto falsificado.
*Publicado na Folha de S.Paulo