6:35Uma semana com ariranhas, castanheiras e Buffon no Brasil pré-Cabral

por Mario Sergio Conti

A paisagem vista do Cristalino ensina que há várias Amazônias

28 de dezembro. Alta Floresta, na fronteira de Mato Grosso com o Pará, teve dois ciclos econômicos em apenas 40 anos de história. O da mineração fez com que sua população chegasse a 100 mil almas. Como o ouro se exauriu, o ciclo da agropecuária sustenta 52 mil moradores.

O amarelo do brasão de armas da cidade, que tem até um leão rompante, simboliza os nove atributos do lugar: riqueza, esplendor, glória, nobreza, poder, força, fé, prosperidade, soberania.

Dos itens, o único evidente é a fé. São sete igrejas no caminho até o porto, católicas, protestantes, pentecostais e evangélicas. Afora elas, tudo está inacabado. São casas de tijolo sem reboco, lotes baldios, oficinas pela metade, paredes sem pintura.

Na uma hora de van até o rio Teles Pires, as terras desmatadas, plantações e pastos rareiam, enquanto a selva se adensa. São mais 40 minutos de barco na floresta fechada para chegar à embocadura do Cristalino.

29 de dezembro. O rio faz jus ao nome na temperatura e não na transparência. Agitadas aqui e ali por corredeiras discretas, suas águas são tépidas e têm cor de Coca-Cola.

A paisagem vista do Cristalino ensina que há várias Amazônias. No Amapá a vegetação é mirrada. Nos arredores de Belém há mais palafitas que árvores. Aqui a floresta reina, tem todos os tons do verde —o da bandeira, o esmeralda, o limão, o do musgo aveludado.

O leito do rio é terapia melhor que divã de analista. A vida civil fica para trás, a mente se esvazia, a brisa atenua o indivíduo. Como com o Pai de “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa, dá vontade de ficar rio abaixo e rio acima para sempre, fora da terra e dentro do tempo.

30 de dezembro. Do topo da torre de observação contemplam-se a ondulação suave, as nuvens da evaporação, o Brasil pré-Cabral, a ausência de história, o Éden antes de Eva e Adão.

Observar pássaros é uma arte. Quando pousam, eles não se deixam ver. É preciso intuição e ser rápido no binóculo. Reconhecer o canto de cada um é para nativos e ornitólogos. Há 586 espécies aladas na região, 30% das do Brasil inteiro.

Deu para ver o cardeal, o chuva-chuva, o martim-pescador, a marianinha, o uirapuru, o pato-do-mato, a cigana, o mutum, a saíra, o coró-coró, o anambé, a biguatinga, e ele, o impagável tucano-grande-de-papo-branco.

31 de dezembro. Como chove a cântaros é preciso pôr botas, chapéu e capa plástica. O calor pegajoso aumenta, assim como a sensação de estar ridículo, mas o corpo logo se adapta. Os queixadas, porcos selvagens, não ligam para a chuva. Têm um fedor nunca aspirado antes.

Com uns 50 metros de altura, a castanheira tem 800 anos de idade —não dá para enxergar sua copa. Na base, o tronco só pode ser abraçado por sete pessoas de mãos dadas. As castanhas foram roídas por cutias, um bicho tinhoso como o quê. As capivaras parecem simpáticas e tapadas.

1º de janeiro. Ano-Novo: salve a vida velha da floresta. Ela supera as expectativas, que eram muitas. Um imenso ser vivo composto pela simbiose de milhões e milhões de outros seres. A riqueza de relações atiça a vontade de estudar geologia, botânica, zoologia.

Logo, a leitura é do “Discurso sobre a Natureza dos Animais”, de Buffon. O conde especula e filosofa: os bichos não têm memória, mas sonham. Iguala-os aos humanos “imbecis” —uma injustiça com as bestas. Buffon é prosa de primeira; a floresta, harmonia poética.

2 de janeiro. Passa um casal de araras. Uma família de macacos tumultua a rede de galhos entrelaçados. O urubu-real pousa no alto da árvore mais alta, dá uma olhada e volta ao céu. O voo rasante de um bando de andorinhas-do-rio roça a água lisa.

Três ariranhas nadam ao lado da lancha por 15 minutos, mergulhando e subindo da água dez metros depois. Luzidias, têm uma aerodinâmica graciosa, não há nadador humano que se lhes equipare. A menorzinha grita o tempo todo.

Uma onça enorme apareceu na margem e foi embora minutos antes. Pena. Rende um epitáfio: aqui jaz aquele que quase viu a onça.

3 de janeiro. O lema do desbravador da região, Ariosto Riva, que David Nasser chamou de O Último Bandeirante, era: “Nada resiste ao trabalho”. É fato. Por isso é preciso mudá-lo, adaptá-lo à natureza, acabar com o mundo de mercadorias.

Contudo, o hino de Alta Floresta anuncia “o final da grande luta de fé, amor e trabalho”. Ele ocorrerá “quando o ronco dos tratores/ não mais se ouvir pelas quebradas/ só caminhões pelas estradas/ transportando os produtos desta terra”.

Adeus, Amazônia.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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