por Thea Tavares
Saudade, esse charme brasileiro, deve ser uma das palavras que mais inspiraram a nossa produção artística e cultural ao longo dos tempos. Vasculhar suas belas citações na nossa MPB, por exemplo, renderia material para inúmeras teses acadêmicas e premiadíssimas “balbúrdias” que disseminam por aí a genialidade do nosso povo. Deter-se apenas no significado dessa palavra, então, é trabalho para várias gerações de estudiosos.
Não tem a ver só com o sentimento de falta ou com as ausências. Esses são meros pontos de partida. A saudade temperada pela diversidade da nossa formação cultural tem nuances de pertencimento e uma carga emocional absurda de beleza, gratidão, autoconhecimento e fé, que são impregnantes. A saudade tem um misticismo todo próprio. E “carga” não é termo pejorativo nesse caso, uma vez que a saudade faz a gente carregar, levar sempre junto uma pessoa, um lugar, um sentimento, uma lembrança, a ponto de serem incorporados à nossa personalidade e formas de expressão. É uma espécie de conexão. Em “Espumas ao Vento”, o Fagner canta um verso que transporta a gente diretamente para a raiz desse saudosismo: “o amor deixa marcas, que não dá pra apagar”. Saudade é como uma tatuagem na alma. Não tem como se definhar diante dessa constatação, mas deixar fluir, crescer com isso, aceitar, absorver e sobreviver com ela ou a partir dela.
Quem vive longe das pessoas e das situações que lhe são essenciais para encarar a caminhada e as construções que a gente traça e ergue por esse mundão a dentro ou já passou por uma perda, sabe o tamanho, o peso e a dor de uma saudade. É latejante e faz uma ferida que está sempre em carne viva. Mas os amantes incorrigíveis e os idealistas também sabem extrair dela sua paixão, inconformismo e toneladas de esperança. Não é só triste, que faz tudo se demorar em ser tão ruim, tem também algo que impulsiona, que move, anima, transforma, valoriza e que imprime significado às coisas dentro dessa tal de saudade. Alimenta e fortalece. Por isso que um povo como o nosso, com tantas e maravilhosas referências, inventou e cultua algo assim. “O meu olhar vai dar uma festa… na hora que você chegar”. É o tipo de oração que cola alegria na “sofrência” do vivente.
Já nasci com saudades e, apesar de carregar o carma de uma espontaneidade quase adolescente e ansiosa, de quem sente que seu tempo é outro e que sua urgência é galopante, essa mania teimosa de sentir saudades de tudo que já vivi e de tudo que eu ainda não vi remete a um envelhecimento e maturidade precoces também. É uma saudade que define a gente, como alguém que demonstra a todo momento que a vida precisa ser intensamente vivida no tempo que nos é permitido vivê-la. Quem sente saudades tem senso de oportunidade acionado no modo escoteiro, “sempre alerta”, ou encantadoramente disposto. Não chega nem a ser aloprado, só ansioso mesmo. Mas é o que faz tudo acontecer porque sabe dar valor a momentos, ocasiões, palavras, gestos e sensações.
Contraditoriamente tudo pra mim é tardio. Fiz uma tatuagem aos 44 anos e comprei minha primeira garrafa de vinho aos 49. Só vim saber o que era a tal da auto estima já dobrando o Cabo da Boa Esperança, às portas de completar meio século de vida. Porque essa saudade que trago no peito ensina a cuidar mais, melhor e demoradamente das coisas, atribui mais significado às conquistas e se demora em reter por mais tempo também o sabor de tudo o que é vivido. Não deixo minha saudade latente ser algo destrutivo ou que anule. Ela impulsiona. Faço meus os versos do Leminski, bem como a confiança embutida neles: “Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além”.