por Manuela Cantuária
A felicidade compulsória é um mal que atinge o mundo inteiro
Lucilene, a enfermeira, estava de plantão no Réveillon. E estava feliz, por livre e espontânea vontade, já que no hospital ninguém é obrigado a ser feliz na véspera de Ano-Novo.
A felicidade compulsória da virada é um mal que atinge o mundo inteiro e Lucilene se sentia privilegiada em seu oásis de silêncio e melancolia. Uma madrugada como outra qualquer a esperava, e nenhum camarote VIP em Jurerê Internacional poderia ser melhor do que isso.
É claro que, para seus colegas da emergência, a noite era cercada de expectativas. A felicidade compulsória da virada faz muitas vítimas. São os clássicos “queima-largada”, pessoas que comemoram a chegada de um novo ano como se não houvesse amanhã —o que é, no mínimo, incoerente.
Falando em incoerência, a enfermeira, que dizia não acreditar nessas besteiras, usava uma calcinha nova, amarela, por baixo do uniforme. Escondia, na intimidade, a esperança de um ano melhor.
As janelas à prova de ruído abafaram as badaladas da meia-noite, mas, mesmo assim, Lucilene tomaria um susto maior do que os cachorros da rua. Uma paciente, em coma há dez anos, abriu os olhos e, com a voz vacilante, pediu um cigarro. Por essa virada ela não esperava. Um verdadeiro milagre, disseram os médicos —até os ateus.
Coube à Lucilene a função de fazer uma retrospectiva da década para aquela mulher recém-desperta, ávida por notícias do mundo lá fora.
A enfermeira não sabia por onde começar. Era mais fácil lidar com a paciente em um estado de inconsciência profunda —monitorando seus sinais vitais ou a cor de sua urina, desfazendo os nós de seus cabelos, massageando seus braços e pernas— do que dizer a verdade.
A paciente entrou em coma em 2010, quando o Brasil elegia, pela primeira vez, uma mulher como presidente. Lucilene sentou-se na beira do leito e listou o que veio a seguir. O 7 a 1, o fim do Calypso, o impeachment, a uberização do trabalho, a tinderização do flerte, a ascensão dos youtubers e do bolsonarismo, o retorno das pochetes e dos integralistas, o terraplanismo…
Foi quando a enfermeira decidiu improvisar um pouco. Acrescentou à lista a cura de todas as doenças terminais, a invenção de carros voadores e de cigarros que fazem bem à saúde, a proliferação de governos laicos, as viagens interplanetárias parceladas pela CVC e os acordos de paz mundial. Rendeu-se, enfim, à felicidade compulsória da virada.
*Publicado na Folha de S.Paulo