7:05MEUS TRÊS FANTASMAS DE NATAL

por José Maria Correia

O tempo passa e as recordações continuam chegando , ainda mais nesta época de Natal , quando os sentimentos afloram com as luzes , os cânticos e o encantamento das crianças.

Então, lá por 1990 eu visitava a magnífica Universidade de Soka, no Japão, e tive minha atenção despertada por duas gigantescas estátuas no pórtico do prédio principal.

Uma era do escritor francês Victor Hugo e a outra do russo Liev (Leon) Tolstoi.

Perguntei para um professor de literatura a quem fui apresentado pelo meu inseparável mestre Zen, Taura, qual tinha sido o critério de escolha para a homenagem dos dois gênios em detrimento de tantos outros grandes das letras universais.

O professor muito educadamente, como é próprio dos japoneses, respondeu que tinham feito uma pesquisa e consulta entre renomados escritores de vários países – e os mais citados foram os homenageados com as esculturas.

Disse também que o direcionamento na consulta fora para obras históricas que pregassem o humanismo e fossem a favor da paz e contra as guerras.

Assim, o notável francês, autor de Os Miseráveis, O Corcunda de Notre Dame e Os Trabalhadores do Mar, entre outra meia centena de notáveis obras publicadas, mereceu uma das homenagens

A outra ficou com o russo, autor da enciclopédica Guerra e Paz e Ana Karenina, as mais conhecidas e admiradas.

Escolhas merecidas sem dúvida alguma.

O professor explicou ainda que a Universidade tinha como valores o Ethos da paz mundial, e dos princípios budistas de harmonia e da bondade, e que os alunos dedicavam muito tempo aos estudos das obras de Dante Alighieri, de Cervantes, de Shakespeare, de Mark Twain e de todos os consagrados autores de todas as épocas e de vários países.

Não pude deixar entregar a ele uma pequena lista dos nossos, de língua portuguesa e espanhola: Machado de Assis e Jorge Amado, Fernando Pessoa e Saramago, Jorge Luís Borges e Gabriel Garcia Marques, que recebeu com muita satisfação, comentando de imediato sobre Pessoa e o Gabo que gostava muito.

Feita essa inoportuna digressão, volto aos meus parágrafos e períodos saltimbancos, como diz o bondoso mestre Distéfano, e ao título que aqui me trouxe – e a justifico.

Charles Dickens, um dos meus autores preferidos na infância, e que ainda permanece assim neste outono da vida, não constava na relação dos maiores do mundo.

Pois para mim, e em minha nada modesta biblioteca, está e ficará sempre em lugar de honra .

Claro, minha lista de mais de seis décadas somaria um número próximo ao de jogadores de futebol, titulares da Copa do Mundo.

Mas o fato é que quem melhor expressou o verdadeiro sentimento de Natal e suas contradições foi C.D. em seu Christmas Carol.

Natal combina com o ambiente europeu das noites invernais, do vento soprando nas janelas, das ruas escuras da antiga Londres e das ceias à luz de velas e candelabros .

Dickens imortalizou a antiga Albion da época Vitoriana, as crianças em andrajos limpando chaminés, as lareiras vazias de carvão, as tavernas cheias de bebedores e a fome e a privação na maioria dos lares dos trabalhadores.

E nesse cenário foi encontrar e criar o avarento Ebenezer Scrooge .

A escolha do nome bíblico deve ter sido uma ironia de Dickens, pois citado no velho testamento em hebraico, significa “pedra de socorro ou de ajuda”- e o personagem era exatamente o oposto disso.

Um homem de negócios rabugento ao extremo e que tinha horror a qualquer gasto ou despesa, como muitos que conhecemos na vida empresarial e na política, esses que só pensam em acumular e ostentar e nutrem um indisfarçado desprezo para com os pobres .

O conto inicia na véspera de Natal e Ebenezer estava irritado com o entusiasmo dos que festejavam – e achava tudo um enorme desperdício de tempo e dinheiro,

Para ele o sentido da vida estava apenas nos negócios e no lucro .

Aborrecido e irresignado com o espírito natalino, o velhote Scrooge foi dormir .

Durante a noite, em seu quarto solitário surgiram em meio ao sono três fantasmas que lhe causaram grande medo espanto.

O primeiro era o fantasma do passado, da infância, e que levou Scrooge a regredir no tempo quando reviu cenas da época em que menino ainda apreciava o Natal, os festejos e as ceias da família reunida e alegre.

O segundo fantasma era o do tempo presente, quando ele foi levado a ver as festas que estavam acontecendo em Londres, a de seu empregado, a do sobrinho e das famílias que felizes comemoravam o nascimento do Deus menino, mesmo sem possuir fortuna alguma.

E o terceiro fantasma era o do futuro, onde Scrooge se via velado em um ambiente fúnebre e desolado sem a presença de um único amigo ou familiar.

O abandono era o resultado da vida de mesquinhez e sovinismo.

Pois fantasmas assim também me fazem companhia nesta época onde nós, os mais velhos e já idosos, somos visitados pela melancolia e as saudades que durarão para sempre.

O mais temido fantasma é o primeiro que, como um cavaleiro do apocalipse, nos leva para a infância perdida, para as noites de Natal inesquecíveis onde, ao lado do pinheiro iluminado, estão o pai e a mãe, os tios e as tias , alguns amigos da infância e todos que já se foram para nunca mais voltar.

Era o Natal onde “ninguém ainda havia morrido” e a inocência nos abrangia e acalentava contra os males do mundo que ainda não conhecíamos .

A noite em que esperávamos com toda ansiedade da infância a chegada do Papai Noel e seu saco de presentes, bem diferentes dos de hoje, mais simples, menos elaborados, mas que nos faziam dormir encantados com os brinquedos embaixo da cama .

O beijo e o abraço da mãe e do pai, a mesa posta com a sobremesa preferida e um encontro onde tudo era amor , carinho e acalento na noite perdida no tempo e nas sombras da memória.

Pois esse fantasma de Dezembro que surge todo o ano em forma de memória é o que nos faz chorar, deprimir e entristecer .

Felizmente ele logo se retira e voltamos ao nosso cotidiano de boas lembranças e doces recordações, sem tanta dor e angústia, na compreensão do tempo e da vida.

Vai embora a máquina de recordações e volta a máquina de viver.

De viver em plenitude, buscando o amor, a amizade, as aventuras possíveis, o encanto onde estiver, de preferência junto ao mar profundo, meu fetiche de azuis e onde nasce o sol no horizonte de todos os sortilégios .

Já o segundo fantasma, esse não nos amedronta em nada, pois Charles Dickens nos ensinou como enfrentá-lo, basta não viver como o Scrooge .

Temos que nos alegrar com as dádivas da natureza, com a festa das crianças , dos mais humildes e dos que tem espírito natalino.

Ser solidário como pudermos com os que mais precisam e não perdermos o sentido da comemoração cristã entre banalidades e consumismos .

Não deixar adormecer o gênio que nos habita e estar em harmonia com o Deus que acreditamos. É o que basta .

E o terceiro fantasma, o do futuro.

Esse é o imprevisível, mas pelas nossas atitudes não estaremos sozinhos no nosso final .

Nosso tesouro de Natal são os muitos amigos que fizemos e que tornaram a nossa vida mais leve e suportável no tempo dos açoites que todos, uma vez ou outra, atravessamos.

As pessoas que ajudamos e por algum tempo estiveram ao nosso lado e as confortamos ,

E o principal, a família que criamos, nossa pequena tribo, que mesmo distante se reúne, se ameaçada pelos tigres de dente de sabre e pelos lobos da noite .

Basta continuar assim pelo tempo que resta .

Distribuindo generosidades, materiais ou gestuais apenas.

E tudo estará justificado para o terceiro fantasma se esvair e termos nossa travessia final iluminada .

Bem, deixando os fantasmas. Sei que na admiração por Charles Dickens, de David Cooperfield, de Oliver Twist e de Tempos Difíceis , não estou sozinho.

Somos legiões de leitores de dois séculos e gerações .

Seus livros continuam fazendo sucesso e sendo adaptados para o cinema com grandes atores.

Até o Batman que estava desolado e solitário no O Cavaleiro das Trevas recebeu a visita dos três fantasmas.

E o personagem tio Patinhas foi criado muito depois do lançamento do livro com o nome original de Uncle Scrooge ou Mac Duck Scrooge, simbolizando todos os sovinas do mundo .

Que toquem então os sinos anunciando a noite feliz e os fantasmas estejam distantes.

Que nossos sonhos sejam velados pelos anjos e nosso despertar seja sempre esperançoso, agradecido , pleno de paz , de amor e de generosidade.

2 ideias sobre “MEUS TRÊS FANTASMAS DE NATAL

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