8:50Virose social não tem cura

por Thea Tavares

Uma das mensagens no final do documentário “Privacidade Hackeada” chama a atenção para a ironia embutida na proposta de aproximação das pessoas, via conexão trazida pelas redes sociais, quando, na verdade, o que se estabeleceu com os usos e abusos dos mecanismos dessa interação foi o distanciamento.

É muito fácil arrumar treta nas redes sociais. Não consigo acompanhar a produção científica das universidades brasileiras acerca dessa temática, mas tenho certeza de que há um campo infinito para estudos das ciências sociais, da filosofia e da psicanálise nessa arena de gladiadores dos nossos tempos. Onde cada um se dirige para o embate imbuído da sua cota de vaidade, de exposição e supostamente amparado no isolamento da sua manifestação individual, que só encontra lastro nas suas limitadas vivências. Não é difícil uma pequena diferença ou um conflito qualquer virar um baita confronto. Não é difícil também que essa discordância alimente ou viralize ódios e intolerâncias. “É que Narciso acha feio o que não é espelho”, diria Caetano. E vamos praticando nesses espaços simultaneamente gregarismo por afinidades e segregação, pelo mesmo motivo.

Por falar na vaidade, peço desculpas antecipadas a quem tenha inconsciente ou automaticamente feito isso alguma vez, mas acho desconcertante encontrar postagens anunciando que um parente acaba de falecer. Ainda mais parente próximo nos galhos da árvore genealógica: pai, mãe, irmãos, etc. Vai chorar, velar, se despedir do parente ou confortar e se apoiar ao vivo e a cores nas demais pessoas que estão também sofrendo aquela perda. Uma coisa é você expressar uma saudade de tanto tempo da ausência desse parente, dividir seus sentimentos com os amigos e aquelas palavras servirem para que alguém, ao se identificar ou se solidarizar com você, encontre e extraia dali significados para sua própria vivência e solidão. Mas não na hora exata da morte, criatura! Pra quê essa atenção? E olha que, uns anos atrás, o Facebook só permitia curtir. Não tinha carinha triste, assustada, gargalhando ou irritada para clicar. Daí, você publicava “meu parente morreu” e as pessoas, para demonstrarem que leram a mensagem e estavam preocupadas com você, davam um “joinha”. Bizarro!

Um fato que me chamou a atenção esses dias foi a discussão dentro da bolha que orbito sobre uma determinada publicação. A dúvida era se as pessoas deveriam ou não repostar em suas próprias redes sociais aquele conteúdo, uma vez que fazer isso aumentaria a visibilidade e atribuiria uma credibilidade desnecessária à matéria criticada. Até o limite do que entendo do funcionamento dessas redes, a lógica é menos (ou nada) qualitativa e mais quantitativa. Se o debate e a polêmica instituída eram em torno de se alcançar mais ou menos gente (o que foge completamente ao nosso controle de reles mortais, como todos os nossos dados nessas searas de exposição), não importava se a carinha escolhida para se manifestar estivesse gargalhando, com raiva, triste ou vomitando, o que contava era a interação.

Diante disso, um bando de “jênios” (termo propositadamente grafado com J) se dava ao trabalho de manifestar sua revolta com a autora do “post”, clicando na carinha encolerizada e, não contente, de comentar “não poste isso”! Todo mundo sabe, mas se esquece, que o mesmo aparelho de telefonia celular usado para redigir um comentário nas redes serve e foi inventado para falar com as pessoas. Mas a preferência da galera foi por publicar a sua opinião contrária e, contraditoriamente, entregar aquela postagem que não deveria estar ali (na opinião dos opositores) para sua própria rede de “amigos”. Para tudo! Onde anda esse meteoro que não chega nunca?

As pessoas projetam na rede social um diálogo que vai se tornando raro no dia a dia. Praticamente conversam consigo mesmo e com as poucas pessoas que interagem, arrumam motivos para desentendimentos. Isso é só um esboço da neurose coletiva que contamina e intoxica nossas já frágeis relações sociais nos dias de hoje. A bem da verdade, sempre houve uma dose de polarização e de distanciamentos nas relações sociais do nosso povo, estabelecidos pela própria formação cultural e pelos valores da nossa sociedade de castas disfarçada e sonsa. Mas sempre existiu também uma consciência, uma humanidade e uma rebeldia natas que nos moveram ao longo da história a transgredir convenções e a transformar realidades naturalizadas como estanques.

O mundo que se descortina sorrateiramente nessas interações virtuais é muito complexo e tem dinâmica acelerada, que exige respostas imediatas. É quase que humanamente impossível imprimir soluções no seu ritmo alucinado e astuto. Quem é da geração que tomou banho de rio, de chuva, subiu em árvores, tem cicatriz de travessura em tudo quanto é parte do corpo, que, nos dias de chuva, escutava contos do folclore ou da literatura brasileiros – essa informação dava piruetas no seu imaginário infantil – e que aprendeu a marcar a batida do tempo no tic-tac de relógio de pulso ou de parede, tem dificuldade de contestar ou mesmo de identificar os gladiadores adversários nessa arena. Não sabe nem o que de fato está enfrentando. O diagnóstico é de uma “virose”, aquela resposta genérica que médico costuma dar. Convive-se com os efeitos dela, enquanto ainda se pesquisam remédios e antídotos apropriados, mas não se tem qualquer ideia de como atuar preventivamente. A virose social não tem cura. E se fosse redesenhar as fases da “evolução humana”, certamente o último homem voltaria a andar curvado, com a cabeça enfiada no seu “smartphone”.

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