por Fernando Muniz
Na mesa lagostas, pernis, aves, frutas e sobremesas, do bom e do melhor, em fartas porções. Bebidas, então, um caso à parte. Ele se debruça sobre as travessas e apanha de tudo um pouco, sem critério. Nem se preocupa com garfos ou facas; é com a mão mesmo, na desordem liberta de modos ou limites.
O gosto da comida sobe pelas artérias e inunda o cérebro. Comer traz paz, completude e satisfação com a vida. Que mais ele poderia desejar, além de uma mesa como aquela? Completa, acolhedora, saborosa? Quem pensa em vida após a morte deixa de viver o aqui, o agora; ele apanha uma perna de peru e mais algumas frutas, enquanto enche o copo de vinho.
Após morder uma goiaba, sente os dentes amolecerem; os incisivos parecem dançar na gengiva. Caninos, molares e sisos vão embora logo a seguir. Somem da boca sem dor, mal-estar, motivo ou explicação.
Todo o esforço ou empenho em fazer estancar as quedas é inútil. Ele toma água e busca recuperar o fôlego. Levanta-se e dá uma volta pela sala, atrás de alguma pista, de um espelho. Pois isso não pode estar acontecendo. Será que colocaram alguma coisa naquela comida?
Uma angústia o invade; aquela fartura toda não serve a propósito algum se os dentes não estiverem no lugar. A mesa perde qualquer sentido.
Mesmo assim ele continua diante do prato, boca vazia e estômago apertado, na esperança de que alguma coisa aconteça. Busca a porta da sala, atrás de ajuda. Ninguém à vista. Grita no corredor, mas só escuta ecos.
Olha para a comida no seu prato; a perna de peru, roída pela metade, parece exigir que ele conclua o ritual.
A angústia se transforma em desespero. O tempo passa e nada acontece; a comida esfria. Começa a anoitecer. Sem enxergar saída, ele toma uma decisão. A única que lhe parece sensata. E enfia a perna de peru, enorme, quase um tacape, na boca.
De uma vez só.