por Sérgio Rodrigues
Homenageado da Flip arde de indignação enquanto o pai de Capitu suspira
Euclides da Cunha, autor homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) que acaba de começar, é o principal concorrente de Machado de Assis ao posto de maior escritor brasileiro da história (no encalço deles vem o “jovem” Guimarães Rosa, filho artístico de Euclides e recém-nascido quando Machado fez a travessia).
Colegas na Academia Brasileira de Letras, Machado e Euclides são de gerações diferentes, mas menos de um ano separa suas mortes: a do primeiro em setembro de 1908, aos 69 anos; a do outro prematura e trágica, em agosto de 1909, aos 43, quando o amante de sua mulher o abateu a tiros em legítima defesa.
Em muitos aspectos, são antípodas perfeitos. Machado é contido, apolíneo, cético, irônico, hiperconsciente das questões de gosto —traços que, nas palavras maldosas de Gilberto Freyre, às vezes faziam dele um “subinglês”.
E Euclides? Bem o contrário: declamatório, dionisíaco, genioso, pedante, meio doido, crentíssimo na ciência e dono de uma linguagem tão convulsa quanto a natureza que retratava —um estilo “esplendidamente barroco”, segundo Freyre.
Um gênio prenunciava a bossa nova; o outro, o tropicalismo. Numa coisa se encontravam: na ambição de superar o insuperável —o acanhamento do pé-direito artístico decretado pela posição cultural periférica do Brasil.
Cada um atacando de um lado, Machado e Euclides são nossos escritores que primeiro abriram picadas nessa mata em busca de um Eldorado que nem sequer tinham certeza de existir.
Machado fez isso com inteligência monstruosa, dobrando a aposta no tom reflexivo e autoirônico de toda ficção para elevar a sua ao nível do melhor humor filosófico já feito.
Para tanto, sacrificou a cor local com que os românticos tinham lambuzado milhares de páginas. Num ensaio, criticou a “nacionalidade de vocabulário”, dizendo preferir certo “sentimento íntimo de nacionalidade”.
Influenciado por românticos e realistas, com rasgos de expressionista de primeira hora, Euclides faz uma síntese da dialética entre a brasilidade nativista de Alencar e a brasilidade cosmopolita de Machado.
“Os Sertões” funde as duas dimensões despejando sobre uma realidade localíssima toneladas de ciência, pseudociência, mitologia, poesia, drama —turbilhão às vezes grotesco de ressonâncias universais, com método na loucura ou loucura no método.
De repente, a mágica: Canudos vira uma paisagem atemporal —talvez fosse o caso de chamá-la de grega, se ela devesse algo a alguém. Mas não deve.
Não à toa, e apesar de sua estranheza e dificuldade, “Os Sertões” exerceu sobre escritores de diversos países uma influência que Machado nunca teve. Sua originalidade é mais ostensiva.
Euclides está além do kitsch, espelhando na forma apinhada de paradoxos e notas estridentes os conflitos que encena quando flagra a violência de um espetáculo que por aqui nunca sai de cartaz: o do intercâmbio de posições entre civilização e barbárie.
Acredito que Machado, por caminho oposto, chegue ao mesmo beco sem saída no fundo da alma nacional. Enquanto o pai de Capitu ergue a sobrancelha, temperando seu horror com melancolia e galhofa, Euclides estrebucha de indignação.
Convido quem estiver em Paraty a prosseguir nessa conversa amanhã, às 15h, na Casa Folha, onde debaterei “A Linguagem de ‘Os Sertões’” com o jornalista Mario Cesar Carvalho. Após a mesa, autografo meu novo livro, “A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos”.
*Publicado na Folha de S.Paulo