por Thea Tavares
“Quem sabe, esta cidade me significa” (Paulo Leminski – “Curitibas”).
Uma amiga está determinada a me convencer a aderir às facilidades dos encontros por meio de aplicativos. Não nego a curiosidade, mas detenho um certo bloqueio ou conservadorismo com relação a esse formato de abordagem e aproximação. O que vou dizer agora só vale pra euzinha e pra minha forma careta assumida de funcionamento. Não pré-julgo quem possa pensar diferente e até autorizo a se divertirem pra valer com minha ignorância, mas meio que soa como um atestado da minha incapacidade de estabelecer relações sociais, interações, contatos de maneira espontânea.
Incomoda-me muito a ideia de que – por melhor que sejam os avanços tecnológicos em solucionarem problemas do cotidiano, como o mal da solidão, a timidez etc – um banco de dados possa cruzar uma série de informações e combinar casais com a finalidade de promover encontros “românticos”, que possam resultar em pegação, saída sem compromisso, namoro e até uniões mais duradouras, só para ficarmos com as situações, digamos assim, positivas, e de finais felizes. Como toda boa e velha realidade nossa, há também as situações que descambam para a violência e extrapolam os limites da sociabilidade e do respeito.
Ao mesmo tempo em que facilitam a vida (até a ministra Damares deposita suas esperanças nesses recursos), os aplicativos precarizam situações próprias da convivência. Será que vão abolir as paqueras nos barzinhos, os flertes possíveis nos mais inusitados e corriqueiros ambientes, do papo na fila de espera até a troca e desvio de olhares num espaço comum e revogar todas as disposições em contrário? Porque tanta facilidade torna desnecessário também olhar para os lados, cumprimentar, sorrir, puxar papo ou “trocar ideia”… Não, essas coisas continuarão existindo, visto que são da natureza humana. Claro que tem conversa também no ambiente digital e as pessoas podem “se conhecer” por ali, atualizando o “você vem sempre aqui?”, o “quer ‘tc’ comigo?” e toda sorte de papinho aranha. Deve ser mesmo caretice minha e só, coisa de quem já tem idade para ter manias e carregar uma enorme preguiça de encarar o novo, de se afastar do conforto do mundo que conhece e sabe como lidar. Afinal, não se conhece de fato as pessoas por maior que seja a intimidade entre elas.
Mas alguns casos mencionados pelas amigas que tentam me convencer a fazer uso do aplicativo mais me desanimaram do que atiçaram minha curiosidade. O episódio mais leve foi o da amiga romântica, que por apoio e incentivo de terceiros buscou uma companhia no “serviço”. Conversa vai, conversa vem, ela estava muito animada com o fato de um rapaz mais novo que ela ter tantos gostos em comum e se mostrar desprendido para conhecer mais do universo daquela mulher madura. Enquanto ela flutuava no mundo estabelecido e conectado com seu provável amante imaginário, eis que ele corta abruptamente o papo zen para indagar: “qual a sua altura?”. Da onde saiu aquela pergunta repentina? É fruto de complexo ou de fetiche? Lá da estratosfera, a mulher despencou em queda livre para a realidade. Rolou ali a primeira e última “D.R.” do casal “viúva Porcina”, ou seja, aquele que foi, sem nunca ter sido.
Outra amiga, mais pragmática, me orienta a relaxar: rola de tudo! De um bom jantar, em boa companhia, até a completa atualização do sistema operacional. “Você que escolhe!”, diz ela. Mas foi justamente ela quem me deixou mais cabreira com o tal do tudo o que rola e que se abre em um cardápio de possibilidades para minha livre escolha. A menina já teve encontro, que resultou em amizade, com um cara que só falava da ex, e já conheceu quem quisesse escalar a esposa (ou o marido) para o programa. Desse tipo! Claro que esses casos foram exceções, ela me conta, prontíssima para encarar as surpresas dos próximos capítulos. “Conheço uma pessoa que casou com o fulano que conheceu no Tinder”, diz. Que bom, que sejam felizes e que seja eterno enquanto dure esse amor, no mesmo grau de confiabilidade e segurança que transmitem os relacionamentos nascidos de outras formas. Aliás, serão menos difíceis ou traumáticos que os encontros espontâneos ou fruto da interação nossa de cada dia?
Continuo achando que já são difíceis e inseguros os relacionamentos entre pessoas que se conheceram no ambiente de trabalho ou não, que foram apresentadas por amigos, parentes e traziam uma certa “carta de referências” embutida no encontro, que cresceram juntas ou que se encontraram por acaso, mas se afinaram à primeira vista, a partir do olho no olho, do contato pele com pele… Imagina dar certo com alguém que, assim como você, buscou suprir sua carência afetiva no aplicativo do celular? Com alguém que determinou desde os primeiros comandos digitados o que esperar da relação, o papel estabelecido para cada um e o tempo de uso ou descarte daquele “match”? Sei lá! Daí, as amigas mais uma vez atacam minha ignorância e pré-conceito, dizendo que as mesmas possibilidades românticas e os mesmos riscos da espontaneidade podem ser alcançados com o aplicativo. “É só uma ferramenta, um facilitador”, dizem elas, que agilizam as coisas num mundo corrido, em que as pessoas estão mais distantes, sem tempo. Pode até ser verdade.
Resolvi testar minha caretice e consultei um guru particular, a pessoa que mais me fala com sinceridade, de maneira nada delicada, o que eu preciso ouvir: a filha! Pela distância geracional consigo avaliar se estou ultrapassada na minha leitura dos nossos dias ou não. “Eu acho que é um atestado de incompetência, não paga esse mico, não, mãe!”, tascou ela, sem dó nem piedade. Criei um monstro! Quase que à minha imagem e semelhança. A prova cabal da perpetuação da minha caretice. Mesmo em pânico, tive de concordar e me senti aliviada em perceber que até ela, com sua cabeça mais aberta e desprendida, tinha a mesma avaliação que eu, nascida lá na idade da pedra. “Sabe o que você faz? Sai pela cidade, conversa, fala com as pessoas, dá ‘oi’, cumprimenta, sorri, essas coisas…”, me disse a sábia guru. Se nada disso der certo, mesmo sendo chata de doer, que às vezes não consigo me aguentar, sei que curto de boa a própria companhia, os momentos de privacidade e de isolamento. Mas não quero, penso eu hoje, facilitar ou precarizar o que só traz emoção, beleza e encanto se vier do esforço, da conquista ou simplesmente do acaso e da conspiração universal. Isso, sim, é romantismo. O resto é a mais dura realidade.