de João Ubaldo Ribeiro
…Quando os padres chegaram, declarou-se grande surto de milagres, portentos e ressurreições. Construíram a capela, fizeram a consagração e, no dia seguinte, o chão se abriu para engolir, um por um, todos os que consideraram aquela edificação uma atividade absurda e se recusaram a trabalhar nela. Levantaram as imagens nos altares e por muito tempo ninguém mais morria definitivamente, inclusive os velhos cansados e interessados em se finar logo de uma vez, até que todos começaram a protestar e já ninguém no Reino prestava atenção às cartas e crônicas em que os padres narravam os prodígios operados e testemunhados.
Deitava-se um velho morto ao pé da imagem e, depois de ela suar, sangrar ou demonstrar esforço igualmente estrênuo, o defunto, para grande aborrecimento seu e da família, principiava por ficar inquieto e terminava por voltar para casa vivo outra vez, muitíssimo desapontado. Assim, não se pode alegar que os padres só obtiveram êxitos, mas conseguiram bastante de útil e proveitoso, apesar de tudo isso haver piorado os sofrimentos da cabeça do caboco Capiroba.
De manhã, assim que o sol raiava, punham as mulheres em fila para que fossem à doutrina. Depois da doutrina das mulheres, que então eram arrebanhadas para aprender a tecer e fiar para fazer os panos com que agora enrolavam os corpos, seguia-se a doutrina dos homens, sabendo-se que mulheres e homens precisam de doutrinas diferentes. Na doutrina da manhã, contavam-se histórias loucas, envolvendo pessoas mortas de nomes exóticos.
Na doutrina da tarde, às vezes se ensinava a aprisionar em desenhos intermináveis a língua até então falada na aldeia, com a consequência de que, pouco mais tarde, os padres mostravam como usar apropriadamente essa língua, corrigindo erros e impropriedades e causando grande consternação em muitos, alguns dos quais, confrangidos de vergonha, decidiram não dizer mais nada o resto de suas vidas, enquanto outros só falavam pedindo desculpas pelo desconhecimento das regras da boa linguagem.
E, principalmente, deu-se forte atenção ao Bem e ao Mal, cujas diferenças os habitantes da Redução não compreendiam se explicadas abstratamente, e então, a cada dia, acrescentava-se um novo item a listas que todos se empenhavam em decorar com dedicação.
Matar um bicho: pôr na lista do Mal?
Não. Sim. Não. Sim, sim.
Não, a depender de outras coisas da lista do Mal e das coisas da lista do Bem.
Sim, talvez. Poucos — e muito menos o caboco Capiroba — podiam gabar-se de conhecer essas listas a fundo e apenas dois ou três sabiam versões, que decoravam como se fossem rezas e que, cada vez que eram repetidas, mudavam um pouco e se tornavam ainda mais misteriosas.
Mas a sabedoria dessas questões do Bem e do Mal foi posta em evidência e sobejamente provada quando tudo começou a acontecer conforme o previsto na doutrina.
Antes da Redução, a aldeia era composta de gente muito ignorante, que nem sequer tinha uma lista pequena para o Bem e o Mal e, na realidade, nem mesmo dispunha de boas palavras para designar essas duas coisas tão importantes.
Depois da Redução, viu-se que alguns eram maus e outros eram bons, apenas antes não se sabia. Mulher má não quer ir à doutrina, quer andar nua, não quer que o padre pegue na cabeça do filho e lhe besunte a testa de banha esverdeada, dizendo palavras mágicas que podem para sempre endoidecer a criança. Feio, feio, mulher má.
Mulheres boas não falam com mulher má, mulher má fica sozinha, marido de mulher má também homem bom, mulher má cada vez mais sozinha, fica com gênio muito ruim, parece maluca. Cada vez mais maluca, castigo do céu porque é mulher má. Homens maus também se desmascaram, também acabam pagando.
Homem mau diz que história do padre não tem nem pé nem cabeça, tudo besteirada, vai pescar. E também fica cada vez mais sozinho, bebe aguardente, ninguém conversa com ele, homem mau sempre pior, pior, castigo pesado por maldade, morre afogado e bêbado, vai para um lugar onde o fogo queima sem cessar e lagartos perniciosos atacam o dia inteiro.
E, finalmente, teve-se notícia da Tentação, antigamente tão dissimulada que ninguém a notava, mas hoje surpreendida nos locais mais insuspeitados, a ponto de, ao saírem da doutrina, muitos jovens passarem o tempo todo querendo avaliar se tudo o que ocorre não será a Tentação em seus disfarces múltiplos e ficarem em grande apreensão, sem nem poder dormir, para não deixar que a Tentação os enrede….
*Trecho do romance “Viva o Povo Brasileiro“