Voltem para os quartéis, soldados. Deu tudo errado! (Reinaldo Azevedo)
Acabou a ilusão. A cada dia que os militares, da ativa ou da reserva, permanecem no governo Bolsonaro, as Forças Armadas, como instituição, se degradam. E se sujam com a lama ideológica em que se afunda a gestão. Em vez do amor à pátria, uma pistola 9mm; em vez do hino nacional, uma .45; em vez do patriotismo, o ódio —que alguns pretendem redentor— à democracia.
Meu ponto de vista é radical e não admite flertes de nenhuma natureza dos fardados com o poder político. Renuncie, general Hamilton Mourão! Sim, sei que o senhor foi eleito. Deixe que Rodrigo Maia (DEM-RJ) seja o primeiro na linha sucessória. Os loucos vão se aquietar um pouco. Afinal, o presidente o queria apenas como um espantalho para assustar civis.
Voltem, senhores, para os quartéis e seus clubes, e lá se dediquem aos afazeres tipicamente militares e à defesa da Constituição. É por isso que, nas democracias, nós, os civis, lhes damos o monopólio do “uso legítimo da violência”.
Vocês garantem os Poderes constituídos se estes forem ameaçados. Aliás, general Augusto Heleno, prefiro substituir a palavra “violência”, a que recorreu Max Weber na expressão acima, por “força”. Civiliza mais.
Não faz sentido, senhor Rêgo Barros, que um general da ativa seja porta-voz de um presidente. Renega o conteúdo de um livro que o senhor mesmo citou em tom elogioso numa das “lives” de Bolsonaro —aquelas que imitam a estética Al Qaeda.
Em “O Soldado e o Estado”, de Samuel Huntington, o “controle civil objetivo das Forças Armadas”, que o senhor diz defender, o impede de portar a voz de um político. Tanto pior quando esse político promove o achincalhe do ente a que o senhor pertence.
Retomem seus afazeres na vida civil, senhores militares da reserva, sem se descolar de seu zelo habitual pela ordem —não é isso? Bolsonaro queria apenas a sua honorabilidade, não suas opiniões, seu senso de dever, sua moralidade, seus compromissos com o que apropriadamente chamam “pátria”. Esses valores não são compatíveis com a gramática do poder em curso.
O general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, um homem de caráter reto, está errado quando diz que Olavo de Carvalho, o prosélito de extrema direita, é um Trótski de sinal invertido. A ideia é sugerir que o autoproclamado filósofo trai ou agride a revolução que ajudou a promover. Trótski ainda fica melhor como o “profeta traído”, caracterizado por Isaac Deutscher.
Não houve revolução nenhuma. Carvalho é o verdadeiro bolsonarismo, nunca seu traidor. Errado, meu caro Villas Bôas, foi aquele seu tuíte intimidando o STF às vésperas da votação do habeas corpus a Lula. Atravessava-se o Rubicão.Hora de voltar. Deu errado.
Ainda é tempo de inverter o sentido da marcha da tropa e estacioná-la do lado de lá do rio que separa o poder civil do militar.
O constrangimento dos generais com o decreto do “liberou geral” das armas é evidente. Justamente eles: os que foram desarmar o Haiti; os que foram desarmar o Congo; os que foram desarmar o Rio —não é mesmo, Rêgo Barros? Agora se veem em meio a um delírio que tem como horizonte, acreditem!, a luta armada redentora entre os “bons” e os “maus”.
O que sente um militar decente, senhores, obrigado a endossar um decreto que vai aumentar o poder de fogo das milícias e do narcotráfico? Notem que não faço a pergunta a Sergio Moro porque só chamo ao debate quem tem o que dizer.
Alguém alimenta alguma dúvida razoável de que os petardos disparados por Carvalho —que Bolsonaro decidiu condecorar com a Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco— contam com a anuência do presidente? Sim, há loucura nesse método, para inverter o clichê. Mas isso significa que método é, ainda que destinado a dar errado. Dará, mas não sem grandes sortilégios.
Voltem a seus afazeres originais, senhores, longe da política! Se o governo Bolsonaro se afundar na própria indigência intelectual, é importante que estejam prontos a defender a Constituição. Mas prestem atenção a uma advertência ainda mais importante do que essa.
Há uma hipótese remota, bem remota, de que o arranjo dê certo. Nesse caso, será ainda mais necessário que os senhores estejam inteiramente dedicados à defesa dos Poderes constituídos. O risco às instituições democráticas seria ainda maior. Se há coisa que sei sobre as almas autoritárias é que o sucesso lhes assanha a sede de… autoritarismo.
Vocês decidirão, senhores, com quantos anos de opróbrio as Forças terão de arcar quando terminar essa loucura.
*Publicado na Folha de S.Paulo