17:58Curitiba revisitada

por Dalton Trevisan

Que fim ó Cara você deu à minha cidade
a outra sem casas demais sem carros demais sem gente demais
ó Senhor sem chatos demais
essas tristes velhinhas tiritando nas praças
essas pobres santíssimas heroicas velhinhas
todas eram noivas todas tinham dezoito anos todas coxas fosforescentes
todas o teu único e eterno amor
que fim levaram
a que fim me levaram?

quem sabe até uma boa cidade
ai não chovesse tanto assim
chove pedra das janelas do céu chove canivete dos telhados
chovem mil goteiras na alma
nesse teu calçadão de muito efeito na foto colorida
não se dá um passo sem escorregar dois e três
como faz frio espirro tosse gripe sinusite
de você para sempre o sol esconde o carão de nariz vermelho

uma das três cidades do mundo de melhor qualidade de vida
depois ou antes de Roma?
segundo uma comissão da ONU
ora o que significa uma comissão da ONU
não me façam rir curitibocas
nem sejamos a esse ponto desfrutáveis
por uma comissão de vereadores da ONU

ó cidade sem lei
capital mundial de assassinos no volante
santuário do predador de duas rodas sobre o passeio
na cola do pedestre em extinção

a melhor de todas as cidades possíveis
nenhum motorista pô respeita o sinal vermelho
Curitiba européia do primeiro mundo 
cinqüenta buracos por pessoa em toda calçada
Curitiba alegre do povo feliz
essa é a cidade irreal da propaganda
ninguém viu não sabe onde fica
falso produto de marketing político
ópera bufa de nuvem fraude arame
cidade alegríssima de mentirinha
povo felicíssimo sem rosto sem direito sem pão
dessa Curitiba não me ufano
não Curitiba não é uma festa
os dias da ira nas ruas vêm aí

eis o eterno vulcão de fumo pestífero do Hospital de Clínicas
você toca na torneira quem viu água de tal cor
a menina atende o telefone outra vez o maníaco sexual
ali na rua o exibicionista que abre a capa preta
em cada janela o brilho do binóculo do frestador
batem na porta é um assalto
na praça leva um tranco já sem carteira nem tênis
tua mulher sobe no ônibus cadê a bolsa
tua filha pára na esquina lá se foi o quinto relógio
não proteste não corra não grite
do ladrão ou do policial
o primeiro tiro é na tua cara

cinqüenta metros quadrados de verde por pessoa
de que te servem
se uma em duas vale por três chatos?

até os irmãos cenobitas
no resto do mundo a igreja fiel da quietude
os irmãos chamados silenciosos
e na Rua Ubaldino
os adoradores da bateria e da guitarra elétrica do Juízo Final
que murcham as flores
azedam o leite da moça grávida
espantam o último gambá do porão

ai da cólera que espuma teus urbanistas
apostam na corrida de rato dos malditos carros
suprimindo o sinal e a vez do pedestre
inaugurada a caça feroz aos velhinhos de muleta
se não salta já era
em cada esquina os cacos da bengala de um ceguinho
quem acerta o primeiro paraplégico na cadeira de roda

não me venham de terrorismo ecológico
você que defende a baleia corcunda do pólo sul
cobre os muros de signos do besteirol tatibitante
grande protetor da minhoca verde dos Andes
celebra cada gol explodindo rojão bombinha busca-pé
mais o berro da corneta rouca ó mugido de vaca parida
a isso chama resgate da memória

não te reconheço Curitiba a mim já não conheço
a mesma não é outro eu sou
nosso caso passional morreu de malamorte
a dança do apache suspensa entre o beijo e o bofetão
cada um para seu lado adeus nunca mais
aos teus bares bordéis inferninhos dancings randevus
cafetinas piranhas pistoleiras putanas
virgens loucas virgens profissionais meias virgens
as que nunca foram

nenhum cão ou gato pelas tuas ruas
todos atropelados
um que se salve aos pulos da perninha dura
pronto fervendo na panela do teu maloqueiro
nunca mais a visão da cadelinha arretada
com a fila indiana de galãs vadios
nunca mais a serenata de gatões no telhado
nunca mais uma simples moça feia à janela
cotovelos na almofada de crochê

nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha narcisista
toda de acrílico azul para turista ver
da outra que eu sei
o amor de João retalha a bendita Maria em sete pedaços
a cabeça ainda falante
o medieval pátio dos milagres na Praça Rui Barbosa
as meninas de minissaia rodando a bolsinha na Rua Saldanha
o cemitério de elefantes nas raízes da extremosa na Santos Andrade
o necrófilo uivador nos túmulos vazios das três da manhã

não me toca essa glória dos fogos de artifício
só o que vejo é tua alminha violada e estripada
a curra de teu coração arrancado pelas costas
verde? não quero
antes vermelha do sangue derramado de tuas bichas loucas
e negra dos imortais pecados de teus velhinhos pedófilos

por favor não me dê a mão
não gosto que me peguem na mão
essa tua palma quente e úmida
odeio o toque do polegar no meu punho
horror de perdigoto no olho
me recuso a ajoelhar no templo das musas pernetas
aqui pardal aos teus panacas honorários e bacacas beneméritos

essa tua cidade não é minha
bicho daqui não sou
no exílio sim órfão paraguaio da guerra do Chaco

o que fica da Curitiba perdida
uma nesga de céu presa no anel de vidro
o cantiquinho da corruíra na boca da manhã
um lambari de rabo dourado faiscando no rio Belém
quando havia lambari quando rio Belém havia
o delírio é tudo meu do primeiro par de seios
o primeiro par de tudo de cada polaquinha

e os mortos quantos mortos
uma Rua 15 inteirinha de mortos
a multidão das seis da tarde na Praça Tiradentes só de mortos
ais e risos de mortos queridos
nas vozes do único sobrevivente duma cidade fantasma
Curitiba é apenas um assobio com dois dedos na língua
Curitiba foi não é mais

3 ideias sobre “Curitiba revisitada

  1. nelson padrella

    Dalton é apenas o melhor de nós. Já o era naqueles anos que havia uma Curitiba humana no lugar desta, quando ele nos empurrava aqueles livrinhos feitos á mão defronte ao Café Alvorada, e quem percebia que ali estava o gênio das letras, o vampiro protetor das meninas do colégio, o padrinho de casamento de tantas marias e joãos? Curitiba não é esta. É outra, que começava na Praça da Universidade e terminava na Praça Osório (longe havia uma ilha chamada Batel), e havia os muitos cinemas, e discutia-se Política, Filosofia, Artes, o último livro de Sartre, o filme Os Companheiros, Esquerda a Direita ainda se respeitando, dessa Curitiba sinto falta. Na Curitiba de hoje quem lê Dalton,, quem discute arte nas rodinhas de café?

  2. `Psiquiatra do Centro Cínico

    Dalton é especialista em destilar o vinagre da alma. Queria permanecer mumificado em um mundo que não existe mais. De temperamento difícil, nunca foi uma unanimidade, acho que nem na família. Esgrime as palavras e dá voz aos chatos que execra, sem perceber que ele mesmo é o maior deles.

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