De Cristóvão Tezza, na FSP
… Pensemos na força política do acaso. Como no futebol, o “se” não entra em campo, mas sem ele é impossível pensar. Observe-se o fenômeno Bolsonaro. O pensamento à esquerda tende a ver neste governo o ápice de um articulado movimento cósmico-conspirador-global das trevas de direita, que une na mesma maçonaria do pequeno e rancoroso desempregado branco até as insídias do judiciário e das finanças.
É o equivalente especular do também delirante marxismo cultural, uma gigantesca onda spengleriana que paira no mundo inteiro a inocular veneno ideológico em cabeças e mentes de modo a produzir a decadência final do Ocidente.
Tirando a cabeça das nuvens: “se” o governo Dilma, por sua própria determinação e vontade férreas, não tivesse sido o monumental desastre econômico e político que foi (o maior recuo do PIB brasileiro em mais de 60 anos), as trevas se ergueriam do túmulo para nos assombrar?
Mesmo assim, o capricho do acaso pode empurrar as pedras do dominó. Exemplo: uma tentativa de assassinato no meio do caminho e a campanha súbita se embaralha, reagrupando valores e desejos, num instante total de polos negativos.
E, sob a âncora econômica (sim, a pauta liberal-desestatizante faz bastante sentido no Brasil de hoje), surge um inacreditável triunvirato cultural do fanatismo e do atraso (Ernesto-Damares-Vélez), mal equilibrando-se entre a alucinação, a desinteligência emocional e a incompetência. Mas aqui o acaso é inocente.
Conversa ao acaso
Admitir que a lei da gravidade é neutra é um exercício de humildade
No início dos anos 1970, participei de uma expedição de 30 dias à ilha de Superagui, um recanto intocado no litoral do Paraná, a bordo de uma pequena baleeira chamada muito adequadamente Anarco, sob a liderança do barbudo W. Rio Apa (1925-2016), então meu guru lítero-filosófico.
Chegando lá, metade da tripulação desembarcou e avançou por terra, ao longo da belíssima praia Deserta, enquanto eu, sentindo-me no coração das trevas, segui com outros marujos pelo longo e estreito canal de Ararapira, nome do lugarejo onde nos reencontraríamos adiante, já na fronteira de São Paulo. Vai o lugar-comum: uma viagem inesquecível.
E também marcante por uma leitura especial (sim, sobrava tempo para ler). Em vez de levar Rousseau, o profeta da vida natural, como talvez fosse apropriado, carreguei comigo “O Acaso e a Necessidade”, do francês Jacques Monod (1910-1976), então um recente prêmio Nobel de medicina e best-seller na Europa.
Seguindo a memória afetiva, relembro do que me ficou na cabeça. Primeiro, o conceito biológico de teleologia, o fato de que todo ser vivo se dirige à sua própria réplica —ele quer ser outro ser vivo. E segundo: essa propriedade celular intrínseca não pode ser automaticamente transportada para o cosmos, o mundo da natureza ou da cultura como imanências irresistíveis, sem se recorrer à mágica, à epifania ou à Revelação.
A história (para ficar neste campo mais tangível) é um jogo interminável entre a necessidade e o acaso, sob pressões sociais ponderáveis, mas nada indica que ela se destina necessariamente a algum lugar predeterminado, seja o paraíso cristão (a primeira grande narrativa teleológica do mundo, que nos arrancou da circularidade do mundo antigo), seja o paraíso terrestre (a adaptação moderna e “científica” do mito de origem).
Um e outro são, em última instância, objetos de fé, que, quando quer mover montanhas, costuma matar gente pelo caminho.
Sabemos bem o que é a necessidade; já o acaso é uma instância dura de engolir. Admitir que a lei da gravidade é neutra e que não há explicação transcendente quando uma tábua nos cai à cabeça é um exercício de humildade às vezes insuportável.
Um parêntese literário: a ideia de destino (se aconteceu, é porque tinha de acontecer) foi ganhando tonalidades distintas (o inexorável, o trágico, o conspirativo, o inexplicável) até se submeter ao jogo de causa e efeito perfeitamente observáveis da consciência moderna, para que, enfim, faça sentido.
Na literatura, curiosamente, o acaso enfrenta limites que não observa na vida real. Machado de Assis, na sua célebre crítica ao realismo de “O Primo Basílio”, de Eça de Queiroz, reclama: se a criada Juliana não encontra, por acaso, as tais cartas comprometedoras, “estava acabado o romance”.
Não por acaso (sem trocadilho), Machado não foi um escritor especialmente fabulador (fábula é sempre acaso e coincidência), ou um ideólogo do realismo, como Eça; sua força narrativa era mais intimamente reflexiva, antecipando tendências do século 20.
Pensemos na força política do acaso. Como no futebol, o “se” não entra em campo, mas sem ele é impossível pensar. Observe-se o fenômeno Bolsonaro. O pensamento à esquerda tende a ver neste governo o ápice de um articulado movimento cósmico-conspirador-global das trevas de direita, que une na mesma maçonaria do pequeno e rancoroso desempregado branco até as insídias do judiciário e das finanças.
É o equivalente especular do também delirante marxismo cultural, uma gigantesca onda spengleriana que paira no mundo inteiro a inocular veneno ideológico em cabeças e mentes de modo a produzir a decadência final do Ocidente.
Tirando a cabeça das nuvens: “se” o governo Dilma, por sua própria determinação e vontade férreas, não tivesse sido o monumental desastre econômico e político que foi (o maior recuo do PIB brasileiro em mais de 60 anos), as trevas se ergueriam do túmulo para nos assombrar?
Mesmo assim, o capricho do acaso pode empurrar as pedras do dominó. Exemplo: uma tentativa de assassinato no meio do caminho e a campanha súbita se embaralha, reagrupando valores e desejos, num instante total de polos negativos.
E, sob a âncora econômica (sim, a pauta liberal-desestatizante faz bastante sentido no Brasil de hoje), surge um inacreditável triunvirato cultural do fanatismo e do atraso (Ernesto-Damares-Vélez), mal equilibrando-se entre a alucinação, a desinteligência emocional e a incompetência. Mas aqui o acaso é inocente.