por João Pereira Coutinho
As pessoas mais moralistas são as menos tolerantes em matéria de humor
Um judeu chega ao céu e encontra Deus. Conversam. A certa altura, o judeu conta-lhe uma experiência engraçada que viveu no campo de concentração de Auschwitz. Deus não ri e censura o judeu por fazer humor com coisas sérias. O judeu responde: “Ah, esquece, você não estava lá”.
É preciso dizer três coisas sobre essa piada genial (e judaica, claro). A primeira é que funciona melhor em inglês (“never mind, you were not there”). A segunda é que expressa, com elegância e inteligência, um problema filosófico e teológico fundamental: a relação entre a existência de Deus e a prevalência do mal.
A terceira, menos óbvia, é que coloca uma pergunta crucial sobre a relação entre a moralidade e o humor. Será que pessoas intensamente comprometidas com a moral —e Deus é o ser moral “par excellence”— toleram o sentido de humor?
Intuitivamente, sempre disse que não. A história da filosofia comprova-o. Platão ou Aristóteles não tinham pelo gênero uma simpatia especial. O humor era uma falsificação da verdade, que enganava e iludia.
Quando se procura a verdade e, mais ainda, quando estamos convencidos de que só existe um caminho para a virtude, qualquer cabeça monista olha para o humor como uma ameaça.
Não admira que as ditaduras do século 20 sejam conhecidas pela perseguição aos humoristas e pela quantidade obscena de piadas que nasceram debaixo dos narizes de Stálin ou Hitler.
Além disso, se a experiência é mesmo a mãe de todas as coisas, a minha experiência não mente: as pessoas mais moralistas que conheço são também as menos tolerantes em matéria de “piadas de mau gosto”. Escusado será dizer que “piadas de mau gosto”, para elas, são todas as piadas.
Felizmente, a ciência psicológica veio ao meu encontro. Soube pelo Daily Telegraph que psicólogos americanos realizaram um largo estudo empírico para saber se a moralidade e o humor são psicologicamente incompatíveis. Os resultados da experiência foram publicados no vetusto Journal of Personality and Social Psychology (pormenores do estudo no fim da coluna).
Fui ler. Sim, lá temos as referências eruditas aos sisudos Platão e Aristóteles. Mas depois, usando 80 estudantes universitários como cobaias, os pesquisadores concluem que o humor, por mais inofensivo que seja, exige sempre a violação de certas normas morais, sociais ou religiosas. O humor, tal como a criatividade em geral, precisa quebrar essas regras para “funcionar”.
Pessoas com um elevado sentido moral são menos propensas a essas “violações benignas” da moralidade. No fundo, revelam uma maior rigidez de pensamento e, consequentemente, uma menor disponibilidade para rirem do que consideram sagrado.
Não se julgue que o estudo assume qualquer tom condenatório perante a moralidade alheia. Longe disso. Os autores são claros ao afirmar que pessoas moralmente comprometidas tendem a ajudar mais os outros. Isso é louvável.
Porém, essa ajuda transporta um paradoxo: a incapacidade de experimentar o humor faz com que o moralista seja menos apreciado pela maioria, que obviamente não tem padrões morais tão elevados.
Consequências do estudo?
Pessoalmente, vejo três consequências —artísticas, sociais e políticas.
Para começar, se o humor e a criatividade partilham a mesma raiz herética, os criadores deveriam ser os primeiros interessados em não aceitar o patrulhamento politicamente correto que hoje é a principal religião do Ocidente.
Quando são cúmplices dos novos inquisidores, eles apenas contribuem para atiçar as fogueiras onde o oxigênio da arte será consumido.
Por outro lado, entendo que a “sinalização da virtude” é irresistível para certas almas narcísicas e inseguras. Por “sinalização da virtude”, entenda-se: a exibição pública de uma virtude presumida perante as causas politicamente corretas do momento.
Mas não se iluda: excessos de virtude criam repulsa em qualquer ser humano normal. Para usar o provérbio português, o que é demais é moléstia.
Por último, se ninguém gosta de santos, as massas tenderão cada vez mais a premiar líderes que se encontram no extremo oposto da santidade. Líderes viciosos, rudes, boçais —ou, como eu os prefiro chamar, “guilty pleasures” do homem democrático.
“Não há humor no céu”, como dizia Mark Twain? Verdade. O humor precisa da imperfeição para acontecer.
A tentativa de criar esse céu na Terra não significa apenas uma ameaça para o riso e para a arte. Será, como sempre foi, o princípio de um novo inferno.
Yam, KChi (Sam), Barnes, C., Leavitt, K., Wei, W., Uhlmann, E., “Why So Serious? Experimental and Field Evidence that Morality and a Sense of Humor are Psychologically Incompatible” (2018)
*Publicado na Folha de S.Paulo