22:19Eu, mim, ela e Deus

de Ticiana Vasconcelos Silva

Ela se lembra exatamente dos erros que cometeu. Não com uma memória recente, mas sim com uma incrível percepção da repetição dos ciclos em sua vida. Não era deja vu. Era a própria personalidade vivendo momentos idênticos. Sua consciência sempre expandida desde a infância a fazia temer tudo. Até que a lua cheia se apresentou em sua vida em dois momentos mágicos, misteriosos e profundos. Viver neste mundo sempre foi pesado para alguém tão sutil. Dos céus à terra. Do nirvana ao inferno. Da estrela da manhã à maçã mordida no paraíso. Hoje ela pisa com firmeza o chão e sente-se cada dia mais viva e forte. Sabe das pedras onde tropeçou. Sabe dos buracos onde caiu. Ergue-se com a força dos ciclones. Voa ao topo da montanha sagrada. Contempla a plenitude da vida. Sabe quem é. Do fim ao começo. Coragem que a faz correr perigos e se deitar ao lado do inimigo. Não tem medo da morte. Pois o seu passaporte já foi carimbado. Tem passagem livre para os templos etéricos. Anjo caído, nunca redimido, buscando a sintonia com as nuvens. É bela e de sangue azul. Tem o céu no coração. Mas nunca se arrepende. Aprendiz e indomável. Méritos de uma vida de penitências. Ascetismo, misticismo, doenças. Aceitação da rejeição. Fantasmas a rodeiam – e ela, no meio, se desfaz da ignorância. Dança e obedece. Subidas e descidas. Mas a sina dela é respirar o hálito do orvalho. Pequenina como as formigas porque com elas aprende a realeza. Distante do mundano, próxima dos insanos que a fizeram acreditar na insensatez. Tudo é real. O sonho, o segredo, o tempo, o Deus da dor. Veloz como a luz. Atroz como a cruz. A marca da luta pela vida. Estamos perdidos do elo. Mas ela veio pelo tambor da floresta ao ouvir o espírito se curvar perante a natureza. Retornou muda. O escudo a protegeu. Ajoelhou e obedeceu. Nada mais a faz correr para o abismo. Ela retornará sem sangue. Pois o momento a deixou intacta ao ataque feroz das gaivotas lunares. Ela é poeira que se confunde com areia. Poesia é somente uma confusão. De letras. Trocaram o r pelo s e o i voltou a seu lugar. Deve ser por isso que escreve tanto. Mas o encanto é mesmo uma brincadeira a se guardar. Jaz aqui uma imagem: a certeza de que os milagres erraram o seu destino. Quantas palavras caberiam em um papel? Aleatórias e significativas? Ela quer parar, mas mandaram ela desenhar. Porque ser já não cabe na memória. Todas histórias do mundo. Todo amor profundo. Confundo ela comigo. Ela. A rainha do sincronário. Sem dicionário e sem paz. Porque saber é um roubo da esperança de ser criança. Há o dia em que não mais escreverá suas ideias apreendidas pela simples capacidade de deixar a alma livre. Difícil ser assim. Mas eu, mim, ela e Deus sabemos que a partida será breve e a distância do sol será um floco de neve.

2 ideias sobre “Eu, mim, ela e Deus

  1. SERGIO SILVESTRE

    Pois é,de uma coisa eu tenho certeza,num futuro alguém vai espanar meu pó de uma soleira de janela.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.