10:15Está rindo de quê?

por Ricardo Araújo Pereira

Os guardas foram buscar o prisioneiro para o levar ao pátio onde ele seria executado. No caminho entre a cela e o cadafalso, o prisioneiro foi a rir à gargalhada.

Conhece esta história?

É provável que não, porque nunca aconteceu. Seria uma ocorrência mesmo muito estranha. Mas faz lembrar qualquer coisa: é a nossa vida.

Nós sabemos que vamos morrer (desculpem, talvez eu devesse ter dito: spoiler alert) —ou seja, temos consciência de que vamos a caminho do cadafalso— e, no entanto, rimos durante o caminho.

Quando alguém pergunta “está rindo de quê?” espera sempre que quem responde reconheça que não há motivo rir. Está rindo de quê?, o meu chapéu não é assim tão ridículo, a minha queda não foi nada engraçada, o meu erro não dá vontade de rir.

Ora, a resposta à pergunta “Está rindo de quê?” é sempre: estou rindo do fato de não ter qualquer motivo para rir.

É disso que o prisioneiro —e nós— rimos.

Quem tem motivo para rir, como é óbvio, não ri. Por exemplo, Deus. Criou o mundo, e qualquer crítico de arte é forçado a reconhecer que se trata de uma obra bem interessante, cheia de boas ideias.

O mar: lindo. Montanhas: que beleza. Árvores: que conceito estranho mas tão bem conseguido. Seios: que triunfo.

Quantos grandes gênios, ao longo da história, tiveram uma ideia tão boa como seios?

Continua a ser a meta a ultrapassar por artistas de todos os tempos e lugares. Porém, e talvez por isso, Deus não ri: só ri quem não tem motivo para rir. Quem ri mais: pobre ou rico? Pobre, claro. Precisamente por não ter motivo.

O escritor português Gonçalo M. Tavares comparou a vida a uma queda.

A metáfora não é nova, mas ele foi específico: estamos todos a cair de um 40º andar. Os nossos corpos vão percorrendo o espaço vazio até ao fim inevitável, e vamos juntos mas sozinhos, ao mesmo tempo.

Nesse processo, de nada adianta sermos fortes, inteligentes ou belos. A nossa força, beleza e inteligência não têm qualquer préstimo –nem para nós nem para os outros.

Mas a capacidade de fazer rir, não sendo capaz de evitar a queda, torna o percurso menos difícil. Não é muito. Na verdade, é quase nada.

Mas é o que há. É uma missão nobre, fazer rir. Boa queda para todos.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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