por Carlos Maranhão
Pouco mais de 30 anos atrás, quando estava às vésperas de completar 31 e dirigia a redação da Folha há quatro, Otavio Frias Filho concordou em dar uma longa entrevista para Playboy. Foi uma das mais ricas experiências da minha vida profissional. O pingue-pongue se desdobrou em três demoradas sessões, em um total de dez horas de conversas gravadas.
Depois de tanto tempo, assim que soube de sua morte, fui reler. O objetivo da entrevista era, evidentemente, expor o trabalho que ele já vinha realizando à frente da Folha, que sob seu comando havia se transformado do maior, mais importante e mais influente jornal brasileiro.
Marca registrada das antigas entrevistas de Playboy, foi uma chamada “conversa franca”, em que ele discorreu, sem eufemismos, sobre as linhas que norteavam o projeto que ajudou a criar para a Folha, os bastidores do dia-a-dia da redação e o que pensava sobre jornalismo, além de, aqui e ali, fazer revelações pessoais.
Selecionei trechos de algumas passagens que a meu ver permanecem atuais, reveladoras e muitas vezes instigantes.
Otavio Frias Filho – Assumi o cargo de diretor de redação no dia 24 de maio de 1984, a convite do meu pai. Havia uma tarefa gigantesca à minha frente.
Playboy – Que tarefa?
Eu achava que o modelo da Folha estava esgotado. A imprensa se organizara de forma dicotômica durante o regime militar. Ou se era a favor, ou se era contra. A Folha experimentava um forte crescimento em termos de presença política na sociedade. A esse crescimento tinha correspondido uma hipertrofia do jornal enquanto veículo de opinião. Entretanto, a essa hipertrofia tinha correspondido uma certa atrofia no jornal enquanto veículo de informação. Em outras palavras: se não fizéssemos uma modificação profunda no jornal, desenvolvendo a parte noticiosa –com mais informação, mais reportagens, mais serviços para o leitor –, o seu futuro estaria comprometido. Se ficasse presa à mitologia política dos anos 70, a Folha perderia o bonde na direção de se transformar no maior jornal do país.
Qual seria o resultado?
O jornal poderia declinar até se transformar em mais um episódio da imprensa alternativa.
Como você decidiu agir?
Havia duas maneiras. Uma, mais lenta e consensual. Outra, mais rápida e traumática.
Por qual você optou?
Comecei optando pela primeira. Minha disposição era não trocar nenhum editor. Só mais tarde eu me vi obrigado a mudar de estratégia.
Como foi isso?
Em fevereiro de 1985, um abaixo-assinado, que recebeu a adesão de quase 75% da redação, foi articulado pelos repórteres especiais. Criticava duramente a maneira pela qual a redação estava sendo conduzida e fazia uma série de exigências, incluindo a revogação do nosso manual. Era a guerra civil. Resolvi expor essa situação para meu pai. Expliquei que, em vista dos nossos planos a longo prazo, tínhamos de correr riscos. Portanto, eu julgava necessário radicalizar. Ele deu sinal verde.
No que consistiu a radicalização?
A Folha empregava 320 jornalistas e, no prazo de duas semanas, demitimos 40. Foi uma conflagração. Consumadas as demissões, tive de correr outro risco.
Qual?
Da noite para o dia, caras de vinte e poucos anos, sem terem passado por uma experiência jornalística mais consistente, foram foram promovidos para postos-chave de editores e editores-assistentes. Alguns nem sabiam que, em jornal, os títulos de reportagens precisam ter verbo.
Você considera que o texto da Folha, de modo geral, é bom?
Não, eu acho que é ruim.
Quais seriam as causas?
De um lado, a queda de qualidade do ensino básico no Brasil. Cada vez mais as pessoas aprendem menos a escrever bem. No caso específico da Folha, há um problema de vazio de gerações. Os jornalistas jovens não passaram por uma carreira normal dentro da profissão. Não encontram aqui dentro quem lhes ensine: escreva assim, não escreva assado. Finalmente, revelamos vários talentos de editores e de críticos, mas não temos sido bem-sucedidos em revelar novos talentos de repórter.
Por que razão?
Várias. Como os repórteres concentravam a maior parte das resistências ao projeto do jornal e como é mais forte entre os repórteres uma concepção romântica, improvisada, intuitiva e a meu ver anacrônica de jornalismo, tivemos dificuldades em avançar nessa área.
Você assiste televisão?
Muito raramente.
Nem o Jornal Nacional?
Não.
O que você lê na imprensa?
Eu me obrigo a ler O Estado de S.Paulo, O Globo e o Jornal do Brasil. Vejo o que me interessa e faço comparações.
A revista Veja você lê?
Raramente eu leio.
E a Folha?
Muitas vezes, se estou com insônia, compro de madrugada nessas bancas que não fecham. Ler a Folha é uma das partes mais onerosas do meu trabalho. Eu tenho um temperamento tal que não consigo ver os erros que saem como se não fossem de minha exclusiva responsabilidade. Eu não tenho prazer em ler jornal. Nunca tive.
Você ri tão pouco. Quem o conhece bem observa que, quando o flagram numa demonstração de alegria, é porque você teria se descuidado. A imagem corresponde à realidade?
Acho que corresponde. Para mim, a ideia de viver a vida para usufruí-la é muito precária. Eu acho que cada pessoa deve inventar um sentido para a própria vida. Segundo o filósofo Ortega y Gasset, “as pessoas se dividem entre as ocupadas e as preocupadas”. Por dever profissional, sou uma pessoa muito mais ocupada do que preocupada. Por temperamento, contudo, sempre fui uma pessoa muito mais preocupada do que ocupada.
Você é feliz?
Acho que não. [Pausa] Acho que sou uma pessoa infeliz, no sentido de que estou sempre descontente com o que já fiz, estou descontente com que eu tinha que fazer hoje. É difícil aplicar a ideia da felicidade no meu caso, porque eu me sinto muito insatisfeito com as coisas e comigo mesmo.
O que achou de dar esta entrevista para Playboy? [Pergunta quase obrigatória pelo manual da revista.]
Fiquei contente, porque foi uma oportunidade desenvolver as ideias que a gente está testando na Folha nestes anos. Acredito que o resultado vai dar para os leitores uma ideia bastante clara de um projeto no qual estou muito empenhado e no qual venho queimando vários anos de minha juventude.