Por Ivan Schmidt
Como tem sido recorrente nesse espaço apelo ao jornal madrilenho El País, aliás, um dos mais importantes do mundo e, para não fatigar ainda mais o leitor massacrado com o lamentável noticiário da politicalha tupiniquim, lanço mão de um assunto menos traumático e, ao contrário, bastante inspirador, eivado de evidentes declarações de amizade, coleguismo e respeito humano entre autênticos gigantes.
Trata-se da matéria publicada na edição online do citado jornal, nessa quinta-feira (15), assinada por Javier Martín Del Barrio, escrita em Lisboa com base no livro que reúne a correspondência trocada pelos escritores Jorge Amado e José Saramago, entre os anos de 1992 e 1997.
Segundo Del Barrio, Amado e Saramago trocaram cartas e faxes para comentar “suas crises literárias e de saúde, próprias da idade e da profissão”.
A filha de Amado, Paloma, e Ricardo Viel, da Fundação do Nobel de Portugal, “organizaram aquela relação epistolar e selecionaram as cartas incluídas no livro Jorge Amado/José Saramago – Com o mar por meio.
O passado de militante comunista e exilado, opina o jornalista, assim como o advento da fotocopiadora, ajudaram o romancista baiano “a deixar um minucioso registro das cartas e faxes enviados e recebidos”, que segundo a filha chegam a 70 mil itens datados de 1930 a 1998, arquivados na Fundação Casa de Jorge Amado, constando entre os remetentes – entre outros – nomes ilustres como os de Pablo Neruda, Jorge Guillén e Carlos Drummond de Andrade.
A correspondência entre Jorge e José durou cinco anos e as cartas se destacam pelos comentários sobre as distinções que lhes chegam ou não. “Acabamos de receber a notícia de que o Camões foi para Rachel de Queiroz”, escreveu Saramago em 1993. “Não discutimos os méritos da premiada, o que não entendemos é como e porque o júri ignora ostensivamente (quase apeteceria dizer: provocadoramente) a obra de Jorge Amado. Esse prêmio nasceu mal e vai vivendo pior. Os ódios são velhos e não cansam”.
O ritmo do envio e recebimento de mensagens via fax, relata o autor do texto publicado pelo jornal, era de tal intensidade que o aparelho chegou a incendiar, levando Jorge a escrever ao amigo: “Nosso fax da Bahia incendiou no domingo […] Foi um belo espetáculo: o fax parecia um vulcão, fez-nos falta. Vale dizer que, além do fax, os peritos eletricistas de uma tevê conseguiram colocar fora de uso os três aparelhos de tevê, a secretária eletrônica, um computador e os jogos (vários) eletrônicos do neto Jorginho, uma catástrofe”.
A fama de Saramago vai crescendo no Brasil, e o autor de Capitães de areia recorda que só Ferreira de Castro alcançou tal reconhecimento na sua época, e que “apenas permanece eterno, o grande Eça de Queiroz. Não sei se José é devoto de Os Maias, eu sou muito devotíssimo”. Dois dias depois vinha a resposta de Saramago: “Onde está o bárbaro capaz de não reconhecer a grandeza desse senhor, até agora nunca igualada?”.
Um tema inevitável permeia a correspondência: a possibilidade de que um deles ganhe o Prêmio Nobel, com o compromisso mútuo sacramentado de que caso acontecesse, um convidaria o outro para estar presente à solenidade de entrega da distinção máxima da literatura mundial.
Del Barrio lembra que em 1994, finalmente Amado ganharia o Camões, logo recebendo a saudação característica do colega português: “O pior é que isto de prêmios não é raro que tragam um ressaibo de amargura, e o Camões, não sendo exemplar, é exemplo. Tanta miséria moral mal escondida, tanta inveja, tanto desejo de morte por trás das fachadas compostas de muitos que, num dado momento, vão ser juiz e sentença… Quando estiveres a receber o prêmio, pensa só nos teus leitores, são eles que valem a pena”.
De fato, da parte do escritor português, é o corriqueiro registro de mais uma das inúmeras demonstrações de péssimo humor, mas não de grosseria ou ressentimento pelo sucesso alheio.
Sabe-se e o próprio jamais escondeu um profundo sentimento de ceticismo, que não raro explodia na verbalização da amargura que lhe turvava o espírito, embora negasse com veemência a reação daqueles que preferiam enquadrá-lo como um cínico inveterado.
No ano seguinte o escolhido para receber o Camões foi José Saramago: “Em nenhum momento de minha vida, passou por minha cabeça que um dia poderiam dá-lo a mim. Lá está ele, para minha alegria e a de meus amigos, e para a raiva de alguns colegas que não querem admitir que eu existo”.
Mas o Nobel passa ao largo dos dois consagrados romancistas da língua portuguesa. “Não há nada o que fazer. Eles não gostam de nós”, cogitou o escritor de Memorial do convento. “Não gostam da língua portuguesa (que deve parecer-lhes sueca)… não gostam das literaturas que em português se pensam, sentem e escrevem. Não têm metro que chegue para medir a estatura de um escritor chamado Jorge Amado, para não falar de outros bastante mais pequenos, no número dos quais a voz pública insiste em pôr-me. Temos de aprender a nada esperar de Estocolmo por muito que nos venham cantar loas ao ouvido. A experiência de injustiça a que tens estado sujeito durante anos e anos deve levar-te, imagino, a encolher os ombros diante dessas contínuas provocações suecas. Mas aqueles que, como eu, veem, em ti nada mais nada menos que o Brasil feito literatura, esses indignam-se com a já irremediável falta de sensibilidade e de respeito dos nórdicos”.
Em 1997 a troca de cartas é interrompida porque o coração e os olhos do velho Jorge já não aguentam. A depressão é profunda: não lê, não escreve e nem dita cartas. Paloma lembra que o pai passava os dias em uma poltrona da sala, de olhos fechados.
“Esta situação durou até sua morte, em 2001, com algumas intermitências quando algo extraordinário ocorria. Em 8 de outubro de 1998, Zélia sentou-se ao seu lado, segurou sua cabeça e, com o entusiasmo que não cabia no peito, disse que seu amigo José acabara de ganhar o Nobel. Como em um truque de mágica, em um milagre luso-sueco, Jorge levantou-se da poltrona, chamou Paloma e pediu-lhe que se sentasse diante do computador, que ia lhe ditar uma nota”, escreveu Del Barrio.
“Foi sua última carta a Saramago”, acrescentou.
Excelente texto!!! Parabéns Ivan, nestas horas de tanta mediocridade na internet, ler um belo texto como este é um alento e tanto!