por Tati Bernardi
Enquanto assistimos, enojados, a essa infinidade de políticos canalhas (e cada montante desviado superando o que oito gerações da minha família não conseguiram com trabalho honesto), convivo em meu micromundo, em minha bolha zona oeste, com pessoas envaidecidas em simbolizar o extremo oposto: elas odeiam dinheiro.
De quem só levanta da cama pensando em enriquecer, principalmente de forma ilícita, tenho asco. Mas o que sentir por esses filhos perdidos de hippies ricos que acordam duas da tarde e destratam os amigos raladores se achando especiais demais para ter um salário? Chef de cozinha (com sete anos de aprendizado na Europa bancado pela família) que não visa o lucro, mas sim o prazer de servir o soberano combustível da existência! Pode esperar que um dia terão de pagar o próprio plano médico e acabarão abrindo filial em shopping.
Um ex-professor vive me dando esporro porque sirvo à demoníaca TV e recentemente se gabou de labutar sete meses traduzindo um clássico de 500 páginas: “Dá uns três paus, mas eu faria de graça!”. Ficamos em silêncio brutal. A sala inundada pela luxúria reversa em não pagar impostos, não ajudar a mulher nas contas da casa, não poder comprar um livro usado pro filho. Viva o verdadeiro artista!
Eles não trabalham em troca de cifras. Arte real não transa capitalismo. São pessoas iluminadas, que expõem a alma com o preço nas telas torcendo pra que nunca, jamais, alguém decida dar limites numéricos para um espírito tão grandioso. Reclamam de como é dura a vida, pedem pra você pagar o jantar que na próxima eles pagam, seguem morando há 20 anos no mesmo microapê todo cagado de problemas, banheiro sem reforma desde que a vovó que morava ali era uma jovenzinha com bobes no cabelo. É a pureza do sonho adolescente num corpo que já já faz exame de próstata. E o que acham de quem nutre um lar trabalhando com cinema, literatura…? Uns vendidos, além de pouco talentosos! Experimente encomendar um lancezinho deles. Uma música. Uma pensata de cinco linhas. Prazo e pagamento são as palavras que os enterram em quartos escuros.
Almocei com uma “garota” (38 anos) querendo ser minha assistente. Filha, neta, bisneta e tataraneta de intelectuais quatrocentões, estava no quarto mestrado e acreditava ter chegado a hora de “começar”. O orgulho que sentia de jamais ter trocado sua genialidade e sabedoria por imundas notas, encharcando-lhe a língua como se somente a ela tivesse sido dado um caráter raríssimo, me contava instantaneamente que a senhora seria uma péssima assistente.
Documentário sobre arquitetos alemães construindo ocas no Pará? Sim. Exposição fotográfica sobre um Natal em um manicômio de periferia? Sim. Todos trabalhos de conclusão de cursos, nenhum de conclusão de boletos e faturas atrasadas.
Eu os respeitaria não fosse a boquinha de desdém quando descobrem meus projetos com propaganda ou cinema comercial. Xeu te contar uma coisa, anjo: não só não posso recorrer a um familiar quando a coisa aperta como ainda sou a única a quem eles recorrem quando as coisas lhes apertam. Então, fada letrada, não me venha com a decência heroica do artista miserável, me dando carteirada com sua virgindade na carteira de trabalho. Você não respeita quem comete uma piada chula pra pagar a drenagem linfática? Pois eu tenho preguiça eterna de herdeiro com mestrado em ciências sociais ensinando pobre a sobreviver.
*Publicado na Folha de S.Paulo
Excelente texto.
Geralmente os petsonsgens estão em Conselhos de Cultura.
Ou estão lotados em assessorias