por Fernando Muniz
O garotinho engole a seco o pão preto, sem manteiga, toma o café de um gole só, espera o pai terminar o dele e saem para a rua, coberta de nevoeiro. Caminham sem dizer palavra. Na altura em que o garoto precisa pegar o rumo da escola, hesita. Segue o pai.
“Que é isso?”, o homem se irrita. “Preferi tentar outro caminho”. Ele para, olha o guri nos olhos e fala pausado: “Filho, ou você briga com ele, ou então briga comigo. A escolha é sua”. O menino faz uma expressão de terror. Pensa no tamanho do adversário, um pinto perto daquele homenzarrão. Baixa a cabeça, dá as costas ao pai e segue pelo trajeto de sempre.
O garoto começa a tomar o seu rumo, resignado. O que tiver de ser, será.
Dali a pouco escuta alguém chamá-lo. Vira-se e vê o pai se aproximar, sem fôlego. “Filho, uma coisa: não importa o tamanho do adversário, cuspir na cara dele deixa o cara sem norte. E não importa o tamanho do cara; chute no saco arria qualquer um”. Dá um tapinha no rosto do menino e segue para o seu turno na fábrica.
Junto à ponte, enxerga um amontoado de moleques. Reconhece os colegas de turma, as meninas, o pessoal mais velho; vai ser uma chacina.
Em meio à turba, o grandalhão. Filho só de mãe, expulso da escola, cheio de cicatrizes, tem prazer em bater nos menores.”E aí, valentão, o que vai ser dessa vez? Vai encarar?”. O sujeito é o dobro dele, tem uns quatorze anos. E como diz palavrões. Xinga, ironiza, rebaixa, diz toda sorte de asneiras enquanto o público o aplaude. Até os colegas de sala batem palmas. Só que o garoto não se abala; enche a boca de muco. Olha para o céu; nada lá, salvo um punhado de nuvens cinza, a cobrir o sol.
Espera o grandalhão terminar mais uma rajada de xingamentos, os aplausos começarem e ele se inflamar com a fama para soltar uma cusparada no meio da cara do ogro, besuntando olhos e narinas com catarro verde. O grandalhão leva um susto; melhor, fica sem reação, em um misto de nojo e repulsa. Chega a ter ânsia de vômito. Os aplausos são suspensos.
O garoto não perde tempo e mira no saco do inimigo; erra e chuta a virilha esquerda, com a sua botina de bico duro; o valentão cai de joelhos, tem vontade de chorar. Mas a dor é controlável. A plateia se refaz da pasmaceira e alguns chegam a aplaudir o garotinho. Que não sabe como agir.
O grandalhão se recompõe. “Vou te matar, seu pirralho filho-da-puta!” e empurra o menino, que, ao recuar, topa numa pedra e cai no areal entre a cabeça da ponte e o rio. O grandalhão vem feito um trator. As meninas começam a chorar. “Ele vai matá-lo! Vai jogar ele no rio! Acudam!”.
No momento em que alguns da plateia viram rosto para não ver o desastre, a maioria aplaude a valentia trágica do pivete contra aquele monstro e outros já cobram o resultado das apostas, o menininho, todo esfolado pelo tombo, em um ato reflexo junta um punhado de areia e atira nos olhos do grandalhão, que dá um berro de dor. E solta mais urros logo em seguida, ao levar um chute no saco. E em vários outros lugares, até apartarem a briga.
No final do recreio da manhã sua mãe aparece, aflita. Alguns colegas começam a aplaudi-lo, mas os bedéis, ferozes, mandam todos para dentro, debaixo de vara.
Caminham para casa e ele não reponde a qualquer das centenas de perguntas dela. Na verdade parece uma pergunta só, pois ela fala sem parar, não baixa o ritmo nem para recuperar o fôlego. E ele, mudo feito um culpado.
A mãe quer fazer curativos nos cotovelos e joelhos, mas ele não deixa. Pelo menos tira o uniforme, todo desbeiçado. Toma banho, come pouco e passa o resto do dia na cama, contando buracos no teto.
Assim que o pai chega em casa, quer saber do filho. “Tudo bem?”. “Tudo”. “Mesmo?”. “Mesmo”. Olha para os arranhões, alguns bem feios. “Fez o que eu te disse?”. “Mais ou menos”. “Mas deu certo?” O garotinho solta um meio sorriso: “Deu”.
“Muito bom, filho. Nesta vida não podemos ser escravos de ninguém”.