por Ruy Castro
“No dia seguinte, a fera já está diferente. A mãe, intuitiva, desconfia que seu bebê começou a queimar fumo com os vagabundos do morro de São Carlos. Ainda não. Foi o jazz”. “Jazz é vício. Não tem essa história de flertar com o lance, brincar com o material, dar uma cafungadinha e voltar, são e salvo, para o aprisco (bééé!) familiar”. “Jazz é feito paquerar a cunhada, passar a mão na mulher do amigo, beijar no elevador a colega de trabalho; começa leve, mas deixa cicatrizes profundas”.
“A gente leva a vida inteira procurando aquela dose. Buscamos essa medida nas mulheres, nos copos, nos livros, na música. Louis Armstrong nos dá isso. Momentos raros. A sensação de que valeu a pena. Não faz mal que passe depressa. É só repetir a faixa”. “Os pais de um amigo haviam saído. Sequestramos o uísque do coroa, botamos Louis numa daquelas telefunkens, cuja frente lembrava um Scania-Vabis, e decolamos. Para sempre”.
“O segredo que existe entre jazzófilos é, ainda que tênue, a possibilidade de comunicação. Em plena Babel, sentimos, sem que saibamos explicar direito o motivo, que alguém está tentando falar a nossa língua”. “O jazz foi nossa primeira internet”.
São trechos de “O Gabinete do Doutor Blanc – Sobre Jazz, Literatura e Outros Improvisos”, livro recém-lançado de Aldir Blanc que me faz perguntar se pode haver outra maneira de falar de jazz. Aldir escreve em saxofonês. É um solo maluco, cheio de pepitas como jazzida, subjazzcente, dejazzvu, e com a melhor definição que já li sobre vários músicos.
“A gente, de boca aberta, quando Max Roach sola, vê flores, lenços coloridos e cartas de baralho onde há só baquetas e escovas”. “[John Coltrane] quanto mais alto voava, piores as visões do inferno”. “[Charles Mingus] passou a vida toda no inferno sem saber que era um deus”.
*Publicado na Folha de S.Paulo