De José Maria Correia
Foi num dia como este de agosto – e seis anos atrás, que voltando do litoral sofri o terrível acidente do qual sobrevivi milagrosamente.
Hoje tenho, portanto, seis anos de idade como renascido.
Quando o carro aquaplanou e fugiu do meu controle levantando voo pensei: “Que pena morrer assim, tão sem propósito”.
Naqueles poucos segundos, enquanto Ford Fusion girava no ar, vi passar o filme da minha vida.
A mãe tão linda como uma artista de cinema indo me buscar no grupo escolar.
O pai me levando almoçar aos domingos no restaurante onde eu feliz pedia a sobremesa de morango com nata.
Pensei: “Talvez hoje eu os reencontre já que minha vida acabou”.
Em um gesto de agonia estendi minhas mãos em direção a eles e ao desconhecido.
Ouvi um estrondo enorme e de repente ao abrir os olhos eu estava em meio a um monte de destroços. Muito surpreso descobri que tinha sobrevivido.
Tentei me mover, não conseguia.
Eu estava coberto de sangue e as fraturas no rosto, na coluna e no tórax não me permitiam falar, apenas pensar.
Fiquei ali no meio da mata na Serra do Mar. Chovia e os passarinhos assustados formavam um coral maravilhoso como se eu fosse ser recebido no paraíso.
Na minha solidão, entre sangue e destroços, chorei profundamente.
Era um momento de encontro definitivo comigo mesmo e minhas memórias.
Um rito de passagem e de angústia.
A releitura da vida em meio à agonia e ao abandono.
Já não mais veria minhas filhas adoradas nem assistiria crescer meus netos.
Adeus à esposa, mulher companheira de décadas.
Não sentia pena de mim nem tinha medo da morte.
Sentia as perdas.
O nunca mais inesperado que chegara.
É o momento supremo em que se percebe que os bens materiais nada representam.
Só os relacionamentos pesam, os amores e as boas recordações.
Pergunte a um enfermo em um leito de hospital o que verdadeiramente é essencial.
Mesmo tão ferido, minha hora, entretanto não chegara.
Surgiram da mata dois anjos em forma de homens simples que, com as mãos ensanguentadas por cacos de vidros e ferros afiados, me retiraram do interior do automóvel.
Fiquei apoiado no colo de um deles na lama e na chuva enquanto o outro corria para a estrada em busca de socorro urgente.
Com os olhos embaçados olhava para as nuvens de chumbo entre meus desfaleceres.
As mãos de ambos ao me carregar em meio a mata estavam tão feridas pelos destroços e estilhaços que fomos os três para o hospital.
Depois de uma cirurgia de sete horas fiquei quase um mês internado com dores terríveis e muitos parafusos por todo o corpo.
Tive que reaprender a andar e, depois, por um longo tempo, a me libertar da morfina, a única medicação capaz de aliviar o meu calvário.
Nas muitas madrugadas de delírios febris convivi com vultos que iam e vinham sem sentido pelos corredores assépticos do hospital.
Essa procissão de desencarnados vigiava meu leito e me esperava para junto seguir.
De lá para cá, durante esses seis anos, dediquei um outro olhar para a vida.
Entendi o sentido de que num átimo tudo se acaba e que temos que usar todo o tempo para qualificar nossa existência.
Nos cercar das gentilezas possíveis, dos prazeres do corpo sim, mas muito mais da elevação da alma e do espírito que nos habita.
Ainda guardamos em nosso interior a inocência da infância, a paixão da juventude e a plenitude do amor.
Temos que promover esses reencontros.
E é na maturidade e depois de um episódio de sobrevivência e redescobrimento que nos reinventamos com o mais nobre dos sentimentos.
A compaixão.
Hoje, uma data especial, a forma de agradecer a amizade e a estima que recebo de meus amigos e amigas já no terceiro ato da minha existência é essa.
Uma confissão amorosa.
E a espera diária do fim do anoitecer, não importando onde estejamos.
Mesmo na solidão de um quarto de hotel, a centenas de quilômetros dos que tanto amo, sei que serei surpreendido com um alvorecer radiante e que minha memória afetiva trará o coral mavioso dos passarinhos da Serra do Mar que guiaram os anjos para me resgatar.
E por onde eu andar, mesmo entre luzes e sombras, curvado e com tantas sequelas físicas e meu inventário de perdas, o amor me acompanhará sempre.
Feliz Aniversário Zé Maria
Grande Zé Maria, por quem tenho sincera admiração. Ele não se lembra de mim, mas eu não me esqueço dele. Não me esqueço do Zé, diretor da Polícia, e me orgulho do Zé, poeta.
que belo depoimento, sensível mesmo, bem escrito… Sr José Maria o sr é um belo de um escritor
Belíssimo depoimento/rememoração, meu bom Zé Maria. Deus não iria tirá-lo de nós antes da hora. Havia ainda muito por fazer, como as deliciosas crônicas que você escreve. Como dizia o saudoso Rubem Alves, a vida é uma sonata que, para realizar a sua beleza, tem de ser tocada até o fim. A sua ainda está inacabada. Grande abraço.
Agradeço ao padrinho Zé Beto e aos amgos que tanto me incentivam nas garatujas, Célio, Parreiras Maringás e o Rasko.
Estar neste espaço e ser lido é um privilégio.
Abcs a todos
José Maria
Grande José Maria, sua plenitude de vida completou seis anos. Que venham tantos outros e muito mais!
O respeito e admiração que sempre tivemos por você e a certeza do conhecimento que é peculiar a tua pessoa só temos que agradecer as forças divina por este milagre. Grande abraço.
Parabéns pela nova vida.
Sabes transmitir realidades pela via das palavras.