ROGÉRIO DISTÉFANO
QUE O BRASIL funciona ao contrário não há dúvida, verdade axiomática. Uma coisa dá certo lá fora, chegamos a copiá-la, como as constituições, ela dá errado aqui dentro. O comportamento das elites, generoso, altruísta e ético lá fora, aqui dentro transita para a criminalidade. E quando falo em elite falo de você, de mim, dos políticos que elegemos, dos empresários que admiramos, dos artistas que amamos. Quem escapa? Os jogadores de futebol – excetuado Kleber Gladiador.
IA INCLUIR na exceção os personagens da Inconfidência Mineira, tentativa ingênua e pura de proclamar a independência, não do Brasil, mas da capitania de Minas Gerais. A Inconfidência nos deu o herói nacional, festejado no 21 de abril, Tiradentes. E nos deu o anti-herói, o traidor Joaquim Silvério. Silvério delatou às autoridades coloniais os líderes, seus parceiros conspiradores Tiradentes, Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manoel da Costa.
Os dois últimos, gente da elite de Vila Rica, sobreviveram. Tiradentes, sub-oficial, virou picadinho. A historiografia abomina que se analise o passado com os valores e as aspirações do presente. Mas não põe objeção ao trazer o passado como referência ou analogia.
APRENDEMOS a execrar Joaquim Silvério, o paradigma da traição nacional, nosso judas cívico – uma exclusividade visivelmente injusta. . Tiradentes e Silvério são nossas referências do herói e do traidor nacionais – na escola nos ensinaram até o título, ‘proto-mártir da Independência’ para Tiradentes. Então Silvério é o proto-traidor. Os primeiros da espécie, daí o ‘proto’.
Na falta de vultos maiores ou melhores, a trágica necessidade indicada por Brecht (“pobre do país que não tem heróis, pobre do país que precisa deles”) seguimos a cultuar Tiradentes com desvario retórico e ignorância histórica e de igual modo repudiar Joaquim Silvério. Herói e traidor, Tiradentes e Silvério, comparados aos homens da política atual, são intercambiáveis, as qualidades de um os defeitos do outro e vice-versa. Porque nossos sinais sempre estão trocados, o Brasil funciona pela contramão.
Tiradentes e Silvério não significariam nada se os compararmos aos personagens de nossa vida pública atual: o traidor de ontem seria o herói de hoje? o herói de hoje, o traidor de ontem? Depende do ponto-de-vista e da filiação política. O brasileiro comum diria que Silvério se deu bem, o Gerson antes do paradigma da vantagem. Foi o pioneiro da delação premiada, com a qual quitou suas dívidas com o fisco da colônia.
A QUEM chamaríamos hoje de herói e traidor? Heróis, os promotores e juízes que atuam nos processos da corrupção? Não é bem assim, o conceito começa a esgarçar. Traidores seriam os presos e acusados de corrupção? De novo, não é bem assim, pois entram a receber tratamento de vítimas.
Traidores porque, associados em quadrilha, saquearam o país. Traidores porque, uma vez presos, traíram, delatando os cúmplices. Precisamos repensar, haja vista a emergente maioria do STF, os ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e – pontualmente – Edson Fachin. Eles começam a minar o combate jurisdicional da corrupção e fazer, dos antes traidores, os heróis do futuro.
NO LÉXICO POLÍTICO vigente, traidor e delator se equivalem – o termo legal é ‘colaboração’, mas os aplicadores da lei não só vulgarizaram como não combateram o derrogatório ‘delação’. Quem não delata não é considerado traidor; quem delata, sim. Herói e vilão – por ora, no círculo de cúmplices e correligionários é visto como herói.
Quando os delatores receberão o geral conceito de heróis do volúvel e movediço brasileiro é questão em aberto. José Dirceu, José Genoíno, João Vaccari foram presos, condenados e não delataram os correligionários e cúmplices eventuais. Eduardo Cunha permanece preso, faz avaliação de risco, calculista e calculador que é.
Marcelo Odebrecht ensaiou bravata ao depor no Congresso e dizer que sua educação de casa repudiava a ‘cagüetagem’ (o belo, castiço e erudito vocábulo assim enunciado pelo príncipe da propina). Mais tarde delatou, ou melhor ‘cagüetou”. Odebrecht, para consumo interno das quadrilhas e externo do brasileiro é traidor, em todas as acepções.
Em trânsito para o panteão dos heróis está o ex-deputado Rocha Loures. Seu advogado, na exaltação que em país civilizado e sério já o teria levado à punição pelo organismo de classe, passou-lhe o galardão, o libertas quae sera tamen da categoria: “morre, mas não delata”.
ROCHA LOURES e JOSÉ DIRCEU são, para efeitos didáticos, as duas faces da moeda, a cara de uma quadrilha e a coroa de outra. Equivalentes na omertà, preferem morrer a delatar. Exemplos de nobreza, heroísmo até. Nunca foram, jamais serão, nem remotamente, equiparados a Joaquim Silvério dos Reis. Porque decidiram não delatar. Até agora, porque não delataram, estão no umbral do panteão dos heróis – como tais assim entronizados em seus círculos de origem: Dirceu, no universo estalino-petista, Rocha Loures, no entorno cavernoso-balbuciante de Michel Temer. Qualquer coisa como Tiradentes.
OS DOIS, que preferem a morte à delação, sobrepõem ações ilegais à devoção pátria. A delação pode ser arrependimento e expiação de culpa entre os povos de cultura puritana e credo protestante. Entre nós a delação é traição, quebra da honra e da lealdade entre delinquentes. Assim se pratica na criminalidade comum e passa a valer na alta criminalidade, a dos diplomados pela justiça eleitoral.
Não delatar, ou não colaborar com a Justiça, não é questão de mera, corriqueira e humana falta de escrúpulos. É a válvula de segurança da impunidade, garantida pelo judiciário lento, por leis lenientes e pela historicamente fraca memória do povo. Acima de tudo, mais que tudo, sustentada na cumplicidade das elites. Por isso quem não delata nem colabora é herói. Porque isto aqui não é Brasil, é Lisarb.