por Fernando Muniz
O remédio custa a fazer efeito. As feridas causadas pelo matagal parecem abertas há dias, muito feias. Ela não desiste; olha para o rapazinho estirado na cama, pouco mais que um menino, faz a limpeza das secreções buscando não acordá-lo e tenta juntar os fragmentos do que ele tem dito desde que chegou. Lembra-se do que respondeu ao plantonista sobre umas marcas nos seus braços, parecidas com queimaduras.
– O temporal chegou ligeiro, pegou a gente de surpresa. Um trovão caiu perto e todo mundo caiu no chão com o baque, com ardido de queimado. Mas nem deu tempo de se recuperar do susto e a gente já teve que pegar nas enxadas de novo.
O adolescente se mexe. Solta um suspiro, abre os olhos e, ao enxergar a moça, seu rosto é tomado pela ansiedade.
– Olá! Já termino de fazer os curativos.
As dores o fazem se contorcer. Tenta falar alguma coisa; nota uma garrafa d´água ao lado da cama. Parece satisfeito. Toma o litro de um gole só. Enrola o travesseiro na cabeça, cobrindo as orelhas e volta a dormir.
A moça percebe que a luz do quarto o incomoda. Baixa as persianas. Deixa-o em paz. Passa pelos policiais que fazem sentinela junto à porta. Vem à mente o que comentaram logo que ele chegou.
– Esse aí deu sorte. O companheiro de fuga não resistiu. Muita pancada na cabeça.
Chega à enfermaria e pergunta se o paciente deu entrada junto com alguém.
– Não, chegou aqui sozinho, conduzido pela polícia. Sem documentos nem nada. Achamos que tinha sido coisa de índio brabo, mas a polícia disse que não. Foi briga mesmo. História muito esquisita. Sei lá se não é tráfico, ou coisa de garimpeiro.
Isso explica, talvez, os policiais que fazem sentinela. “Mas por que tanto interesse em vigiá-lo? Está um trapo! Se fosse perigoso levariam ele para a penitenciária. Lá tem centro médico também”. Continua a sua ronda, mecânica, pelos outros quartos. Doentes comuns com malária, insolação, fraturados em acidente de moto, dos quais ela se desincumbe sem pensar no que está a fazer.
O fim da tarde se aproxima. Hora de renovar as compressas e seguir com os remédios, antes de ir para casa. No quarto uma freira o visita, acompanhada de dois leigos. Nota que ele chora baixinho. Anêmico, logo se cansa. Sente falta de ar. Ela interfere e, com gentileza, pede à freira que o deixe repousar, embora ele proteste.
– Carece não, moça. Estou bem. Preciso contar.
– Você vai ter todo o tempo do mundo para fazer isso, assim que se recuperar – e arruma o travesseiro dele.
A freira olha para os leigos, que saem do quarto de cabeça baixa. Volta-se à enfermeira com ternura e a abraça. O sotaque carregado torna sua mensagem ainda mais solene.
– Se algum jornalista aparecer, peça que vá na Pastoral. Por favor. Mas antes pede documentos. E cuide com os policiais. Não são confiáveis. Não deixa ele sozinho. Quer que eles fiquem por aqui? – aponta para os leigos.
– Não precisa não. Muito obrigada. E eles nem podem ficar. Daqui a pouco acaba o horário de visitas.
Sente medo. Por que a freira falou aquilo? Parece coisa séria. “Que tráfico nada. Isso é briga de terra. Desde quando freira gringa se interessa por traficante?”. Resolve emendar o turno. Pega o celular e fala com a colega da vez, que aceita na hora.
Quer estar o maior tempo possível ao lado dele, tão mirrado, cheio de infecções, embalado em um sono inquieto. O rapaz acorda; ao vê-la, parece aliviado. Acessa a internet, atrás de pistas. Sente-se frustrada, pois não sabe por onde começar a busca.
Já é noite fechada quando aparece um fiscal, acompanhado por policiais federais. Movimento que assusta as sentinelas; sentem-se rendidos pela escolta. Quer ver o paciente de imediato. Mas ele só fala se a enfermeira estiver junto. Chamam a garota.
– É essa?
– É essa.
– Então fala. Quero saber como você veio parar aqui.
Tem dificuldade em se acomodar. A moça o ajuda, delicada, apesar do pavor com a situação.
– A viagem foi dura, doutor. Ônibus, trem, balsa. Vim porque queria mandar dinheiro para casa, para a minha mãe, sabe? Muita pobreza. A promessa era boa, um salário mínimo por mês para limpar a floresta, cuidar do pasto e do gado.
– Mas quem te chamou para trabalhar?
O rapaz franze a testa, tenta se lembrar.
– Ah, um homem importante, da política, que até aparece na tevê. Isso deu confiança em nós. Já me lembro do nome.
– E quanto tempo vocês iriam trabalhar para ele?
– Coisa de seis meses e pegaríamos o rumo de casa.
– Você veio sozinho?
– Não, não. Como lá na vila éramos oito que queriam vir, achamos que um ia cuidar do outro. Minha mãe me deixou vir com essa condição. Ficamos felizes, achamos que era um trabalho digno – emociona-se; a voz, fraca, fica embargada. Mas precisa contar.
– Isso faz uns três anos. Nunca recebemos nada.
Pesquisando no meu seguimento de persianas, fui checar minha posição no buscador do google, encontrei seu blog, o que me chamou atenção foi a frase: baixo as persianas! no primeiro instante achava que poderia ser uma forma pejorativa, tive a curiosidade de aprofundar do que se tratava, percebi então que seu blog muito bem escrito diga-se de passagem, trata-se meio que por parábola, despertando a reflexão de como ainda em 2017, temos ainda uma minoria que comanda esse pais de forma totalmente escrota, verdadeiros hipócritas abusando do poder, enganado os mais humildes, pessoas que nunca tiveram a oportunidade de informação o que interessa e muito a classe dominadora dos políticos, banqueiros e grandes industriais. pergunto até quando teremos que aceitar essas condições sub humana? até quando suportar esses desmandos? até quando passaremos por escravos dessa podridão?