9:19Meninos de rua

por Darcy Ribeiro

Você gosta de menino de rua? As pessoas são classificáveis, para mim, em duas categorias. Os que gostam e os que detestam. Eu sou dos primeiros, gosto deles. Acho até que, se eu fosse favelado, queria ser menino de rua.

Não há comparação possível entre a vida de um menino da favela ou das periferias, que é onde eles mais se concentram, e a de um da rua. Os primeiros vivem famélicos, pegando comida do lixo e tentando roubar uma banana na feira dos pobres, com o perigo de levar uma bala. Sua salvação é se transformarem em agentes dos traficantes. Eles põem nas suas mãos armas poderosas, que todo menino gostaria de manipular, e muito dinheiro, mais do que seus pais ganham, inclusive para ajudar o sustento da casa.

Vida de menino de rua é outra coisa. Seu espaço é a rua mesmo. Cheia de carros bonitos, cujas marcas e anos de fabricação eles conhecem perfeitamente, rodando macios ou perigosamente velozes. Cheias de vitrines cintilantes, com mercadorias que não querem nem podem comprar, mas que são boas demais de ver. O roubo na rua também é mais fácil e mais rendoso. Suas vítimas são indefesas e têm mais o que dar, como jóias bem pagas pelo receptador e dinheiro vivo.

O convívio, também, na rua, entre eles, é melhor. Têm que respeitar as meninas, porque toda menina tem dono, seja um adulto que as explore como cafetão, seja outro guri que a considere e a defenda como sua esposa. Outra qualidade da vida na rua é que ela dá importância aos meninos. Gente de toda parte e de todas as religiões chega ali cheia de dinheiro, querendo salvá-los. Eles se cuidam de não se entregar, mas recebem o que lhes dão de graça -só custa umas fotos com o assistente social.

Há, porém, um aspecto na vida dos meninos de rua que me parece atroz. É a exploração desenfreada deles por empresas multinacionais, produtoras de cola de sapateiro, que está envenenando seus pulmões e levando-os à doença e à inanição. Os fabricantes se esforçam, junto com os químicos mais competentes que existem, para tornar inebriante o cheiro da cola de sapateiro. Quem cheirou uma vez só quer cheirar mais. Para comprá-la, fazem toda sorte de violência.

Esse vício é, hoje, provavelmente, o mais grave do Brasil e já atingiu, também, a meninada das escolas primárias. Sei de casos de filhos de gente de classe média que morrem de nariz enterrado na lata de cola. Esses novos consumidores estão aumentando.

O problema é perfeitamente sanável. Basta aprovar meu projeto de lei que manda colocar na cola uma substância que, em vez de torná-la desejabilíssima de cheirar para viciar as crianças, a torne repelente. O projeto atolou na Câmara dos Deputados, nas mãos de um relator que achava que defendia os fabricantes de sapato não os obrigando ao uso de uma cola fétida, que talvez até tornasse os sapatos também fedidos e invendáveis. Não é verdade. A substância repelente pode perfeitamente ser volátil e desaparecer, uma vez exposta ao ar.

Tudo isso significa que grandes empresas estão assassinando crianças de rua e, agora, crianças em geral, para defender a lucratividade do seu produto. Com a abertura da nova legislatura, meu projeto passará a outro deputado. Vamos fazer força para que este tenha mais sensibilidade para a vida das crianças do que para os lucros dos fabricantes da cola assassina.
Estarei atento. Você também precisa abrir o olho.

*Publicado na Folha de S.Paulo em 17 de fevereiro de 1997, dia em que ele morreu

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