7:05Boas Intenções

de Fernando Muniz

        Não se sabe por que ela comprou aquele bicho. Sai cedo para o trabalho, sempre de preto ou cinza, em roupa de quem não gosta de cachorro. Leva os filhos à escola, ali perto.

Passam o dia fora e só aparecem no início da noite, com o bicho histérico de fome e sede. De tanto fazer barulho a vizinhança começou a reclamar. Ela nem deu atenção.

– Cuidem dos maridos de vocês, isso sim, para não ficarem feito eu! E batia a porta na cara das vizinhas.

Tanto incomodou que o dono da padaria, nos fundos do quintal dela, passou a jogar sobras de pão, restos de presunto e de queijo para ele, que fazia uma festa louca, mais e mais parrudo, olhos ingênuos cravados em uma carranca feroz.

Até que um dia ela sumiu. Sem dar notícia, mesmo porque nunca falara com a vizinhança. Pegou os filhos, umas malas velhas e foi embora.

Mas deixou o cachorro, acorrentado rente ao muro dos fundos. Demorou uns três dias e a comida acabou. Deu-se conta que a dona sumira e desandou a ganir, uivar e latir, hora após hora, noite adentro, até que o padeiro não aguentou. Pulou o muro, tirou a corrente e passou a tratá-lo, na esperança de que a dona aparecesse. Mas nada.

– Vamos dar parte dessa louca na polícia, onde já se viu! – a vizinha da frente decretou a sentença.

– Ih, nem adianta; se a polícia não aparece nem para recolher bandido morto, vai cuidar de cachorro abandonado? O negócio é acabar com ele – o vizinho do final da rua pondera, com as certezas de quem acompanha a vida pelos jornais.

– De jeito nenhum! Matar o bicho?! Que culpa ele tem? Vou chamar a Sociedade Protetora dos Animais. Peraí – a filha do padeiro, a mais apegada ao brutamontes, sai atrás do telefone.

Duas horas depois uns rapazes aparecem, compenetrados, anotando tudo. Entram no quintal da casa abandonada, porém saem rápido, ante o avanço do animal sobre eles. Mesmo abandonado, continua a sua rotina de sentinela.

– Bom, vamos atrás do dono dessa casa. Dali, para a polícia. Abandono de animal!

No dia seguinte, bem cedo, uma viatura dá as caras, para espanto da vizinhança. Os policiais repetem as mesmas perguntas dos rapazes, anotam tudo e saem atrás da mulher.

– O proprietário nos disse onde ela trabalha. Vamos catar essa vadia pelos cabelos!

A vizinhança, pasma com a eficiência dos policiais e da rapaziada que protege animais, suspiram consternadas. Como seria bom se cuidassem assim de humanos.

No mesmo dia, por volta das quatro da tarde, a dona do cachorro aparece, olhos vidrados, descabelada.

– Quem foi o desgraçado que me dedou? – dispara contra o padeiro, único ali com quem ela costumava trocar palavra.

– Sei lá eu, dona! Por que a senhora pede isso para mim? Não tenho nada a ver com isso!

– Ora ora, não se faça de besta! Eu sei que você jogava pão velho para ele!

– E o que uma coisa tem a ver com a outra?! Aí na rua são sete vizinhos e todo mundo reclamava da choradeira dele. Pergunte a eles!

– Eu não vou perder meu tempo. Venha! – apanha o cachorro pela coleira, feliz pelo retorno da dona, saltitante em torno dela.

– Venha que hoje vou te dar uma coisa especial para comer – e lança um olhar frio, de magarefe, ao padeiro.

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