17:33ZÉ DA SILVA

Nunca acreditei nessa história de regressão. Minha vida já é um atraso, por que deveria? Mas nas noites em que as baratas e os ratos não me incomodam no pardieiro onde moro, umas lembranças estranhas me acontecem. Não conheci pai e mãe. Não fui abandonado em lixeira, como em novela da Globo ou aquelas reportagens para o povo chorar no almoço ou jantar, apesar de viverem na merda. Queimaram os dois num acerto de contas. Descobri depois que era sobre drogas. Os dois eram viciados e abusaram do “patrão”. Me contaram que foi um tiro na testa de cada um – e que eles estavam ajoelhados e de mãos postas. Acho que pediram por mim. Me largaram na frente de um orfanato. Deu no que deu. Vida de lixo. Mas o que me vem é a forma como fui feito. Foi numa noite bonita, de lua. Os dois jovens ainda não tinham conhecido os venenos do barato. Eram do interior. Uma janela estava aberta na casinha do sítio. Entrava uma brisa que lambia as plantações e carregava para dentro do quarto o perfume das flores de um pequeno jardim. A rede era branca como o sorriso da minha mãe. Se amaram em silêncio, no ato de descoberta mútua. O gozo, simultâneo, foi como se tivessem finalmente conhecido deus na essência. Penso nisso e me seguro para mais um dia. A cena está aqui dentro. Não sou tão feio como me vejo no espelho quebrado que tenho encostado numa parede.

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