por Ivan Schmidt
Nada acontece por acaso. Não existe isso de geração espontânea em política, a não ser de tempos em tempos o aparecimento de líderes carismáticos que caem nas graças do povão, para logo serem substituídos por outros. No Brasil recente temos os cometas Getúlio (o que durou mais), Lacerda, Juscelino, Jânio, Collor e Lula que, cada um com seu estilo, conduziram o país para o bem ou para o mal.
Segundo os cálculos o ciclo varguista durou 18 anos (15 da ditadura e 3 da presidência constitucional), ao passo que Lula e Dilma, se não acontecer a renúncia ou o impeachment da presidente, completarão 16 anos à frente do governo da República, só dois anos menos que o caudilho de São Borja. Ambos perdem ligeiramente, entretanto, para os anos de chumbo em que o Brasil foi governado por generais do Exército (1964-1984).
O ciclo petista começou com a primeira eleição de Lula em 2002, depois de algumas tentativas frustradas como aquela do último debate com Fernando Collor, que o Jornal Nacional editou para passar a impressão que o sapo barbudo fora massacrado pelo parvenu alagoano.
Na verdade, a semente transformada na árvore petista havia sido lançada pela geração que viveu a empolgante experiência de 1968, o ano que não terminou segundo o jornalista e escritor Zuenir Ventura. Quarenta anos depois ele escreveu 1968 o que fizemos de nós (Planeta, SP, 2008), no qual revisitou os mesmos cenários e os mesmos personagens da época em que a rapaziada pretendia mudar o mundo.
É natural que em quatro décadas as idéias, opções e posturas sofram mudanças radicais, não raro se colocando no lado rigorosamente oposto ao ocupado antes. Na política não é diferente.
Em particular sobre a inflexão do PT, Zuenir escreveu que “o choque maior, a grande decepção ocorreu no governo Lula, não só porque o PT supostamente encarnava princípios básicos de 68 – sobretudo a ética e o desprendimento cívico – como porque boa parte daquela geração – José Dirceu, José Genoino, Dilma Rousseff, Franklin Martins, Marco Aurélio Garcia – ocupava ou ocupa cargos importantes no poder”.
A patota do mensalão, que o então procurador geral da República Antonio Fernando de Souza identificou como “quadrilha” chefiada por ninguém menos que José Dirceu de Oliveira e Silva, com a colaboração de importantes dirigentes do partido na época (Genoino, Delúbio e Silvio Pereira), agiu com o deliberado escopo de comprar apoio político e lotear cargos, assim “como fez negócios ilícitos em paraísos fiscais”.
O resumo do dramalhão de péssimo gosto foi percebido por Zuenir a partir da cassação do mandato de deputado federal de José Dirceu, pelo voto de 293 colegas da Câmara. Para o jornalista o PT sacramentava a dilapidação do “patrimônio acumulado em um quarto de século de existência e que era um dos valores que a geração de 68 exibia como um tesouro: a ética”.
Num país de corrupção endêmica, bombardeava Zuenir, “em que os escândalos políticos são uma tradição, o governo do PT conseguiu a proeza de atingir uma escala inédita, acompanhada de uma dose exagerada de cinismo. O principal argumento substantivo que o partido, o governo e seu presidente encontraram para justificar todos os ilícitos cometidos era que fizeram o que todos faziam. O partido que durante 25 anos se apresentava com justificado orgulho como o que fazia diferença era igual – igual, não, pior, porque prometia ser diferente”.
Para dar o necessário sentido de credibilidade a um relato escrito 40 anos depois, Zuenir entrevistou personagens emblemáticos daqueles idos dentre os quais o sociólogo Cesar Benjamin, “o mais jovem militante de 1968”, que aos 14 anos já estava na clandestinidade e preso aos 17 no interior da Bahia, onde alfabetizava camponeses. Exilado na Suécia voltou ao Brasil em 1978, e logo estabeleceu contato com o movimento sindical do ABC paulista, “onde os operários da indústria automobilística iniciaram uma série de greves históricas, comandadas por um desconhecido barbudo chamado Lula”.
Ao lado do líder sindical e outros idealistas, o sociólogo se engajou no processo de criação do PT “do qual foi ativo militante e dirigente até 1995, quando saiu fazendo sérias acusações à direção do partido, sem poupar Lula”, comentou Zuenir.
Na entrevista Benjamin fez declarações sinceras e objetivas que revistas anos depois se assemelham a potente facho de luz sobre feridas purulentas que hoje desabrocham como baudelerianas flores do mal: “Podemos fazer todas as críticas que quisermos ao Prestes, ao João Amazonas, ao Marighella, ao Mário Alves, ao Gregório Bezerra, mas cada um deles foi exemplo de dignidade. O Prestes morreu pobre num apartamento que o Niemeyer deu ou emprestou para ele morar. O Apolônio morreu com seu soldo de coronel da resistência francesa num apartamento de classe média. O João Amazonas morreu dignamente como secretário-geral num partido que ele fundou. Esses caras deixaram um legado para a esquerda, e o PT destruiu”.
Cesar Benjamin esteve a bordo da nau petista e, por isso, revelou pormenores da ação desleal dos principais dirigentes do partido, a ponto de saltar do barco sem afivelar o colete salva-vidas. “A partir de 89, o Lula passou a ter uma difícil equação política para resolver”, explicou. “Queria ser presidente, e para isso precisava ter um partido político suficientemente forte para sustentar essa pretensão. Mas esse partido não podia ser aquele que havíamos construído, um partido vivo e militante. Com aquele PT, ele seria sempre vetado pela elite do país, como foi em 89. Se queria chegar à presidência, demonstrando-se confiável, precisava transformar o partido em outra coisa”.
O que segue é ainda mais sintomático: “O Zé Dirceu ganhou importância porque se tornou o grande operador dessa transformação. O Lula não é um operador. A dobradinha que se formou atendia aos dois – ao Lula, porque a destruição do PT militante pavimentaria seu caminho à presidência, já na condição de candidato dos de cima, o que ele sempre quis ser; e ao Zé Dirceu, pois se tudo desse certo, ele seria o sucessor natural de Lula. Houve uma combinação de interesses. Isso exigia um processo de desmontagem do PT, de transformação do partido numa máquina eleitoral poderosa, mas inofensiva”.
Com clarividência e informações seguras, indícios do que se tornaria realidade pouco tempo depois do rompimento foram lucidamente expostos pelo sociólogo, que dos cinco anos passados no cárcere ficou três em completo isolamento. Referindo-se a dupla que passou a dominar o partido que deveria ser dos trabalhadores oprimidos pela elite, advertiu que a mesma introduzira no PT uma arma nova: dinheiro, lembrando que “é por isso que os chamados ‘operadores’ ganharam importância: nessa época, Delúbio Soares, por exemplo, era o obscuro representante da CUT no FAT, que é uma enorme fonte de dinheiro”.
A trama faz lembrar um romance policial do italiano Andrea Camilleri: “Nenhum de nós pôde perceber, em tempo real, a dimensão da mudança que estava acontecendo, até porque tudo se passava nas sombras. O fato é que a Articulação começou a manejar recursos crescentes. Isso absorveu muitas prefeituras do PT – Santo André, Ribeirão Preto, muitas outras. Os esquemas foram se multiplicando. Marx tem uma frase em que ele fala no ‘poder dissolvente’ do dinheiro, pois, onde o dinheiro domina, as qualidades se dissolvem. Lula e Zé Dirceu foram dissolvendo o PT em um banho de dinheiro, cooptando todos os que podiam cooptar. Patrocinaram uma seleção negativa, que favorecia os piores”.
Em nome dos 16 anos de militância no PT e das torturas sofridas nos porões da ditadura, Cesar deixou o partido sublinhando a data com ironia: “Quando comecei a ver gente lombrosiana ganhando cada vez mais importância, procurei o Lula, e ele disse para eu não me meter”.
Quando o leitor ouve falar em Delúbio Soares, Silvio Pereira, Marcos Valério, Alberto Yousseff, José Vacari Neto, Nestor Cerveró, Paulo Roberto Costa, Fernando Baiano, Pedro Barusco, Renato Duque et caterva, consegue estabelecer alguma ligação entre esses nomes e a expressão ‘operadores’? Lembrem-se de que Benjamin citou que o esquema armado por Lula e Zé Dirceu carecia de muito dinheiro e, para atingir esse fim, necessitava dos ‘serviços’ especializados de operadores que conhecessem o caminho das pedras. Coisa elementar para essas figurinhas carimbadas do mensalão e do petrolão.
No último domingo (6), sob o estrago causado pelas declarações do senador Delcídio Amaral vazadas pela revista Isto É, a condução coercitiva de Lula para depor na Polícia Federal e a tentativa descabelada de dissimular a propriedade do apartamento tríplex do Guarujá e do sítio em Atibaia, onde é sabido que somente milionários têm poder aquisitivo para manter propriedades, o Estadão publicou excelente entrevista com o ex-governador do Rio Grande do Sul pelo PT, Olívio Dutra.
Na mesma linha de Cesar Benjamin na entrevista a Zuenir Ventura em 2008, Dutra (que é também um dos fundadores do PT) desabafou: “Um partido que nasceu para ser um contestador da política tradicional e fazer da política a construção do bem comum de repente não está sendo diferente de nada das tantas coisas que criticava, contra as quais nos colocamos diametralmente opostos”.
“Acho que o PT está envolvido num espaço de atuação em que perdeu a sua identidade e se misturou com a política mais tradicional. Quem mudou não foram os adversários. Nós é que mudamos e, no meu entendimento, para pior”, acrescentou ao afirmar sua confiança no partido: “Eu sou PT e quero que o meu partido saia dessa inhaca em que se meteu por essa política do pragmatismo e da governabilidade a qualquer custo”.
Pois é, meus amigos, o Brasil parece ter voltado aos tempos em que os bichos falavam e os homens andavam de cabeça para baixo.
Cometi um erro de data, pelo qual mais uma vez peço desculpas ao leitor. O ciclo de governo dos generais começou com o golpe em 1964 e se estendeu até 1984, com a eleição indireta de Tancredo Neves. Ficou doente e José Sarney assumiu.
Meu bom ZB, o que seria da gente se não tivéssemos o mestre Ivan?
Prezado Célio, cada vez me orgulho mais de tê-lo como colega deste blog, sob o olhar benigno do grande ZB… grande abraço.