6:20José Ghignone, adeus

Do Gazeta do Povo

Morre o livreiro José Ghignone

Empresário comandou rede que chegou  a ter 13 lojas em Curitiba, mas fechou as portas definitivamente em 2011

O livreiro José Ghignone faleceu neste domingo (31) em Curitiba, aos 94 anos. O enterro foi realizado ontem no Cemitério Municipal

José Ghignone, conhecido como Dude, comandou por décadas a rede de livrarias inaugurada em Curitiba em 1921 pelo pai, João, nascido na Itália (1889-1978). O grupo chegou a ter 13 lojas na cidade. A remanescente fechou as portas em agosto de 2011, um ano depois de Dude parar de trabalhar.

A última loja funcionou por sete anos na Rua Comendador Araújo, e substituiu o tradicional ponto do Calçadão da Rua XV, fechado pela falta de segurança no local. Dude executou sua tarefa de “semear” homens pelo tempo possível, mas a dificuldade de locomoção o afastou das atividades.

Sarcástico

O filho Fernando Ghignone diz que o pai tinha um mau humor “fantástico”, muito refinado e inteligente. Essa característica o aproximou do escritor Graciliano Ramos, de quem Dude foi amigo pessoal e grande admirador de suas obras.

“Ele leu de tudo, mas se for para indicar um autor de preferência, é o Graciliano, até por esse traço de identidade compartilhado pelos dois”, conta o filho. Como “semeador”, gostava de distribuir livros a clientes da loja. “Ele também ajudou muita gente a se formar na UFPR, franqueando ou doando livros para pesquisa. Pedia para pagar apenas se pudessem”, acrescenta.

Dude costumava dizer que só não nasceu dentro de uma livraria porque veio ao mundo em um domingo. Desde muito cedo trabalhou com o pai e não teve outro ofício que não fosse o de livreiro. Apesar de ter se retirado das atividades, continuava muito lúcido e acompanhava o noticiário político e esportivo, até seus últimos dias. Faleceu em casa, de madrugada. Deixa três filhos, netos e bisnetos.

6 ideias sobre “José Ghignone, adeus

  1. Raul Urban

    O desaparecimento de Dude significa o fim de um ciclo histórico de uma Curitiba romântica vivida ainda nos anos 1960, até 1970. Estudante de Jornalismo na Católica, calouro em 1967, mas já profissioalmente ativo, um ano depois, em rádios e jornais da cidade, fiz de Dude meu “guia” das leituras que ajudaram a me formar. Foi o tempo em que a Fortalewza da Rua XZV, com a porta de madeira com entalhes, tão cantada e encantada pelo tamb ém romântido Nireu Teixeira, muitas vezes, no ciclo difícil de um Brasil capenga, busquei livros “encomendfados”, abrigados em caixas de sapato entregues furtivamente por outro ícone das Livrarias que fizeram história: Waldomira – quem não se lembra? Mais que simples vendedora. Waldomira lia, lia muito, comentava obrar. sugeria, propunha artigos para presentes, alertava para obras únicas, capazes de uma transformação urbana, enquanto Dude, lá no canto dos fundos com seus óculos escuros, pisando o chão de ladrilhos, se fazia “protetor” de uma nov a geração que incluía nomes como Raimundo Caruso, Manoel Carlos Karam, Leminski, eu e tantos outros.
    Foi Dude quem me ensinou o caminho à leitura de Werneck Sodré; de Osny Duarte Pereira; de Kafka; de Leôncio Basbaum; dos tantos outros que – dizia-se – eram os indutores de formação “à esquerda”.
    Quantas vezes, na ânsia de obtermos um exemplar dos então cobiçados Cadernos do Povo Brasileiro, ou da não menos desejada Revista Civilização Brasileira (que, felizmente, tenho completa), aguardávamos o sinal para entrega, de forma sutil, enquanto degustávamos as marrequinhas na Confeitaria Cometa (ou o tradicionalíssimo pérola com chopp); ou na Leiteria Schaffer, ou na Confeitaria das Famílias.
    Era um tempo em que naquela quadra que vai da Barão do Rio Branco à Monsenhor Celso, tínhamos a Jade Turismo, a Farmácia Minerva, o Tancredo Magazine, a Maison Blanche (que depois mudou para a Voluntários da Pátria e deu nome ao prédio em que se instalara).
    Dude, que, felizmente, conheci ainda num período em que seu pai, João, era vivo, nos guardava qual protetor com guarda-chuva das intempéries de um país castigado pelo regime não-democrático. Bússola de seu tempo, nos deu o Norte luminoso. Muito, muito mais tarde, conheci Fernando, o filho; conheci Gilda, a irmã de Dude. Ali mesmo, na Fortaleza da Rua XV, levei originais de alguns escritos que, infelizmente, nunca foram publicados, mas Dude os enviou a nomes editoriais como Ênio Silveira e outros.
    Com Fernando, convivi, anos mais tarde, no curto espaço em que foi Secretário da Comunicação Social da Prefeitura – onde sou concursado e de carreira desde 1993, não sem antes ter vivido 10 anos como assessor de Imprensa do Ippuc, de 1976 a 1986. Fernando, mais tarde, foi de novo parceiro enquanto Diretor de Transporte na URBS, onde até hoje estou disponibilizado, e isso há sete anos.
    Ao mestre Dude, que tantos ensinamentos passou a uma geração inteira dos então “novos”, um preito, uma lembrança, uma saudade. À família, um obrigado por eu ter tido o privilégio de conviver com o Arauto das Letras Araucarianas e que soube lutar pelos direitos democráticos, sempre.
    Obrigado – Raul Guilherme Urban.

  2. Ivan Schmidt

    Uma perda lastimável para a história de Curitiba, em primeiro lugar, mas também para o Paraná. Um livreiro (herança do pai) no sentido vero da palavra, um homem que semeou livros a vida inteira. Um papo delicioso e instrutivo. Conhecia e tinha amizade com muitos escritores e editores… um dia me contou que a pedido do dono da Cultrix (especializada em psicologia, parapsicologia e afins) indicou o grande José Paulo Paes, que havia morado em Curitiba, para ser o editor da casa…
    Em outro tempo, muito ligado a Enio Silveira, da Civilização Brasileira, que estava em crise financeira, sugeriu a gigantesca liquidação do acervo a 5 cruzeiros cada título. E, ainda, com o Jô Soares como garoto propaganda, que no filme “comia” livros…
    Tenho para mim que Dude, mesmo afastado do mercado há muitos anos, fechou com chave de ouro o ciclo dos grandes livreiros, aqueles visionários que fizeram da arte de comercializar livros a razão de sua existência.

  3. Raul Urban

    Ivan, vale acrescentar mais alguma coisa: tínhamos, ainda no correr do fim dos 1960 e no andarilhar dos 1970, a não menos tradicional Livraria Univesitáqria, na Rua Presidente Faria, hoje não mais que um “sacolão popular” que vende hortifrutigranjeiros – quem diria!! Ou a Livraria Dantas, coladinha no prédio da Associação Comercial – onde, diga-se, comprei muitos livros ainda calouro do curso de Direito da Católica (aliás, não concluí o curso, mas o de Jornalismo, sim, e aí estou 48 anos dedilhando da Olivetti Lexikon 80 ao teclado do computador).
    É verdade, falavas do sempre lembrdo José Pauilo Paes – quase que ele edita um ensio poé3tico que então produzi, mas, por motivos diversos, a ideia não saíu do papel. Paes foi, contudo, enquanto visitante esporádico da Curitiba ainda lúdica, um “paizão” de tgodos nós, ao lado de Dude. Pois é, falei anteriormente de Ênio Silviera – e em casa, qual horta bem cuidada, há uma “plantação” dos grandes tempos que simbolizam o fausto então representado pelo império da Civilização Brasileira e da Paz e Terra. Era um tempo em que o hoje calçadão abrigava na porta das livrarias nomes (que conheci ainda, felizmente!), como Alcu Chichorro, Neston Stadler de Souza (que foi meu Professor de Ética e Legislação de Imprensa), Mussa José Assis, ou ainda, já velhinho, mas sempre atento, o Maestro Bento Mossurunga, o também músico e compositor Valtel Branco, e lá vai uma fileira de nomes dignos que soube, cada um a seu tempo ilustrar com perfeição a Curitiba que tinha outros ares. Lembro quando Dude, festivo, recebeu belo dia Millôr Fernandes; coube a ele, estimular-nos a escrever mais e mais. E foi assim que, em 1968, estudante e já profissional ativo na extinta Rádio Guairacá, comecei a escrever uma coletânea poética encerrada em 1986, mas que será lançada apenas no correr deste ano, em data a ser definida. Mas foi Dude que também me inspirou a escrever “Curitiba:Lares & Bares”, que lancei em 2002, editado por Eduardo Fenianos, nosso Urbenauta, com ajuda da Lei de Incentivo Municipal. Pouco adiante, em 2004, chegou às livrarias outro livro, desta vez editado pelo Fábio Campana, mas nascido na Secretaria da Comunicação Social da Prefeitura, quando Teresa Martins era a Superintendente: a História do Transporte Coletivo de Curitiba – o pontapé inicial coube a Dude, sabedor da minha paixão pelos ônibus. Pois é, como já dito anteiormente, fica a lembrança de um tempo único – o do pensar, o do ler, o do aprender, o do assimilar, o do olhar à frente e acreditar que somos capazes de fazer de José Ghignone, nosso Dude, o santo protetor de quem soube, com ele, trilhar as coisas cotidianas de forma digna.

  4. Vinhoski

    Conheci a livraria no fim dos anos 80. Numa época em que gastar em livro era ser extravagante e perdulário, quando se recebia um salário mínimo.

    Nos anos 90, nas promoções, a família Ghignone ampliou o leque de clientes, inclusive pobretões do Boqueirão.

    Na era do pdf e do kindle, a figura de livreiro ficará para a história, mas penso que foram eles que desencadearam o que chamamos hoje de Era da Informação no âmbito informatizado.

  5. Ivan Schmidt

    Ótimas lembranças as do Raul Urban, sobre a história de nossa maior vocação de livreiro. Mas, onde estão os outros frequentadores da livraria e também amigos de Dude? O leitor Vinhoski lembrou uma das facetas melhores de Dude, as promoções a preços convidativos dos livros expostos em simples bancas. Um dia lhe perguntei onde arranjava aquilo tudo e ele me respondeu com o sorriso de sempre: “Onde fico sabendo que há uma livraria fechando as portas, vou lá e compro tudo. É que eu penso em vocês que gostam de coisa boa”…
    Fui cliente da Gighone desde idos de 1967, por aí, e um dos primeiros livros que comprei na loja da XV foi “Navalha na carne” do Plínio Marcos…

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