por Yuri Vasconcelos Silva
Quando um grupo de hominídeos entrou em conflito com outra tribo, um deles havia descoberto, dias antes, o poder de combinar um duro fêmur a uma boa velocidade. No filme 2001, Uma Odisséia no Espaço (dir. S. Kubrick, baseado no livro de A. Clarck), a descoberta da ferramenta como instrumento de defesa e ataque sugere qual espécie iria dominar o planeta dali pra frente. Não pelo uso da arma, mas da inteligência.
Neste e em tantos outros filmes, respaldados pela história da humanidade, a violência acompanha o homem da mesma maneira que faz um fiel cachorro ao dono. Um cão interno. Ele é quase incontrolável e, quando apertado o botão correto, domina o sujeito de maneira tal que a razão é sobrepujada pelo velho companheiro, o instinto pré-histórico. Não há persuasão racional a altura desta emoção aflitiva. Grunhidos, palavras obscenas e objetos que caibam num punho são atirados no breve instante em que a adrenalina é injetada no sangue – e a parte mais primitiva do cérebro, o hipotálamo, toma de assalto o funcionamento dos pensamentos e do corpo. Se um dos objetos ao alcance deste meio segundo de loucura for uma arma de fogo, num tempo mais ligeiro que um click fotográfico, o sujeito mete uma pequena bola metálica dentro do corpo de outro. Este projétil, devido a sua imensa velocidade, carrega consigo a energia de destruir o que encontrar em sua trajetória, com a potência de estourar artérias, perfurar ossos, explodir órgãos vitais e matar outro ser como resultado final.
A vítima pode ser um desconhecido, uma pessoa da família, amigo ou alguém que atentou contra sua vida. Se a arma estiver na mão de um civil, é muito grande a chance de alguém próximo, inocente ou ele mesmo, ser o alvo do projétil. Não se trata de especulação. É tão factual quanto esperar que uma pessoa não treinada ou habituada em pilotar motocicleta venha a cair se precisar utilizar uma.
Talvez seja verdade que todos deveriam ter a liberdade de escolha, tão sagrada nas democracias ocidentais, de poder dormir com uma pistola semi-automática debaixo do travesseiro. Mas seria uma verdade degenerada pois, se esta linha for seguida, todas as drogas poderiam também ser legalizadas, pois seria condição irrestrita de liberdade individual consumir crack até sua própria morte se o sujeito assim desejasse. Isso é liberdade?
Então aparecem aqueles que carregam gráficos sob os braços e mostram as estatísticas onde se relaciona o número de homicídios em países cujo comércio de armas de fogo são liberadas. Barrinhas otimistas mostram que, lugares onde a população carrega armas na cintura, apresentam menor taxa de homicídios ou criminalidade. O problema das estatísticas é que são frutos de pesquisas amplas e de pouca profundidade. Elas ignoram outros dados fundamentais e camuflam as prováveis condições reais da baixa criminalidade. Por exemplo: se ao invés de utilizar como parâmetro a população armada e inserir dados dos níveis de educação do mesmo país, alcançaremos resultados semelhantes com conclusão completamente diversa: países que educam seu povo apresentam menor criminalidade. Assim, seria possível, através da estatística, argumentar que a taxa de homicídios de uma sociedade poderia estar associada a quantidade de café que se toma por dia naquele país. Junto dos números, deve acompanhar um estudo profundo e alguns pesquisadores a tiracolo, só para maiores esclarecimentos.
Se o problema é proteger a própria família baseado na sensação de medo e na ineficiente política de segurança pública, ter pistolas ou granadas em casa vai diretamente contra a intenção inicial. Criminosos sempre existiram e continuarão por aí por um bom tempo. E eles sempre serão melhores do que o pai de família que comprou uma Walter PPK e a guarda num cofre. O mal entrará na casa dele, vai lhe tirar tudo e sair com mais uma arma. Se alguém da família tiver a coragem de apontar a pistola para um criminoso, vai morrer. O intruso tem maior experiência, provavelmente já matou alguns – e tem muito pouco na vida a perder.
A não ser que haja um grande programa nacional de treinamento, para que o país forme um exército de donas de casa com coldres em suas pernas, armar a população será tiro de misericórdia na combalida segurança pública do país. Enquanto as forças policiais mais eficientes do mundo já adotaram armas não letais para proteger sua população, e a maior potência bélica do planeta caminha para o controle no comércio interno de armas, o Brasil discute o absurdo, baseado no medo e pouca informação. Falta pouco para nos juntarmos aos hominídeos imaginados por Kubrick, num retrocesso de milhares de anos. Bang bang.