6:50Um gesto e sua grandeza

por Ivan Schmidt 

As editoras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Boitempo (SP), resolveram brindar os leitores brasileiros a partir de março desse ano com a edição em português de um dos muitos livros escritos pelo filósofo italiano, Giorgio Agamben, um dos mais sólidos pensadores da atualidade. Trata-se de O mistério do mal. Bento XVI e o fim dos tempos, cuidadosamente traduzido por Silvana de Gaspari e Patrícia Peterle, tendo sido o original lançado na Itália em 2014.

Na verdade, o livro que tem apenas 78 páginas, reúne dois textos breves assinados por Agamben, a saber, “O mistério da Igreja” e “A história como mistério”. No primeiro ensaio o filósofo interpreta a renúncia do papa Bento XVI, a um só tempo, em chave teológica, política, escatológica e histórica. O segundo texto é a transcrição da conferência proferida pelo autor em Friburgo, na Suíça, no dia 13 de novembro de 2012 segundo se lê na orelha da primeira capa, data em que recebeu um título honoris causa em teologia.

Sobre a renúncia papal, que denominou de “grande recusa”, o filósofo se reportou a um fato extraordinário somente vivenciado até então pelo pontífice Celestino V, que declarou estar ciente da “fraqueza do corpo, da diminuição do conhecimento e da maldade do povo, pela enfermidade da pessoa e a fim de que possa reencontrar a quietude de minha consolação passada, espontânea e livremente abandono o pontificado e renuncio expressamente à sede, à dignidade, ao ônus e à honra e dou, ao Sagrado Colégio dos Cardeais, plena e livre faculdade para eleger e prover, segundo os cânones, a Igreja católica de seu pastor”.

O gesto sereno de Bento XVI, na visão de Agamben, “deu prova não de vileza – que, segundo uma tradição exegética seria tudo menos segura, como Dante teria escrito de Celestino V – mas de uma coragem que adquire hoje um sentido e um valor exemplares”. Um aspecto sintomático da questão foi registrado no dia 28 de abril de 2009, quando Bento XVI depositou sobre o túmulo de Celestino V, na cidade de Áquila, “o pálio que recebera no momento da posse, provando que a decisão teria sido meditada”.

Há também coincidências flagrantes em ambas as justificativas da renúncia, porquanto Celestino V usou “praticamente as mesmas palavras de Bento XVI”, escreveu Agamben, ao se referir “à fraqueza do corpo” e “à enfermidade da pessoa”. Fontes antigas informam que as razões verdadeiras deveriam ser antes procuradas em sua indignação “frente às prevaricações e às simonias da corte”.

A acuidade do raciocínio agambeniano sobre a “grande recusa” do papa alemão, permite impressionante e veraz aplicação à realidade política mundial e, em particular a um país que tão bem conhecemos. “Por que tal decisão nos parece hoje exemplar?” pergunta o filósofo para em seguida fornecer a resposta: “Porque volta a chamar atenção para a distinção entre dois princípios de nossa tradição ético-política, dos quais as sociedades parecem ter perdido qualquer consciência: a legitimidade e a legalidade. Se é tão profunda e grave a crise que nossa sociedade está atravessando, é porque ela não só questiona a legalidade das instituições, mas também sua legitimidade; não só, como se repete muito frequentemente, as regras e as modalidades do exercício do poder, mas o próprio princípio que a fundamenta e o legitima”.

O filósofo não escreveu pensando no país que tão bem conhecemos, aquele cujas instituições expedem nossos documentos de nascimento, identidade, estado civil e, o mais opressivo de todos, o número (seria o da besta apocalíptica?) que nos transforma em indefesas peças duma tentacular engrenagem que nos vigia e, em muitos casos nos sufoca dia e noite como o Grande Irmão do romance de George Orwell.

No entanto, procurando similitudes nessa criteriosa elaboração, vamos encontrá-las, porque não são poucas, ao nos depararmos com o inevitável confronto com a realidade de nosso próprio país: “Os poderes e as instituições não são hoje deslegitimados porque caíram na ilegalidade; é mais verdadeiro o contrário, ou seja, que a ilegalidade é difundida e generalizada porque os poderes perderam toda a consciência de sua legitimidade”.

Nessa linha, Agamben faz a ressalva que “é vão acreditar que se pode enfrentar a crise das sociedades por meio da ação (certamente necessária) do poder judiciário – uma crise que investe a legitimidade não pode ser resolvida somente no plano do direito. A hipertrofia do direito, que tem a pretensão de legiferar sobre tudo, revela, isso sim, através de um excesso de legalidade formal, a perda de toda a legitimidade substancial”.

“A tentativa moderna de fazer coincidir legalidade e legitimidade, procurando assegurar, através do direito positivo, a legitimidade de um poder, é – como resulta do irrevogável processo de decadência em que ingressaram as instituições democráticas – totalmente insuficiente”, acrescentou.

Lembremos que uma das chaves utilizadas pelo filósofo para interpretar a renúncia de Bento XVI foi a teológico-escatológica, o que o levou a entender que legitimidade e legalidade são duas partes de uma única máquina política que não só nunca devem ser reduzidas uma à outra, mas devem permanecer sempre, de alguma forma, operantes para que a máquina funcione.

Nesse sentido, o discurso se encaminha para uma peroração digna de um pensador que não por acaso teve entre seus modelos de empreendimento intelectual sumidades como Walter Benjamin, Michel Foucault e Hannah Arendt: “Se a Igreja reivindica um poder espiritual ao qual o poder temporal do Império ou dos Estados deveria ficar subordinado, como aconteceu na Europa medieval, ou se, como se deu nos Estados totalitários do século XX, a legitimidade pretende prescindir da legalidade, então a máquina política gira no vazio, com êxitos frequentemente letais; se, por outro lado, como aconteceu nas democracias modernas, o princípio legitimador da soberania popular se reduz ao momento eleitoral e se restringe a regras procedimentais prefixadas juridicamente, a legitimidade corre o risco de desaparecer na legalidade e a máquina política fica igualmente paralisada”.

A essa altura me parece insofismável que o pensamento de Giorgio Agamben se adapta como uma segunda pele à realidade político-institucional brasileira, na qual se repete o choque que não é invenção recente entre legitimidade e legalidade. Infelizmente nota-se que muitas coisas são legais (ou têm a aparência dessa formalidade), mas não são legítimas. E muitas que parecem legítimas, não raro, podem estar em aberto conflito com a legalidade, daí o estado de caos que se observa. Temos hoje no país um confronto entre Executivo e Legislativo, de modo mais agudo entre o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e a presidente Dilma Rousseff e seu partido, o PT. Ambos os contendores estão envolvidos diretamente na Operação Lava Jato, embora a investigação não tenha alcançado a presidente da República, mas um magote de figuras do PT, dos partidos aliados e da própria estrutura governamental.

O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, chegou a sugerir que os ocupantes das cadeiras mais altas começando com Dilma, deveriam todos, sem exceção, renunciar a seus cargos para que a gestão federal recomeçasse do zero. A sugestão é arrojada, mais ainda porque feita por integrante da instância máxima da Justiça, que para todos os efeitos procura desincumbir-se da função de poder moderador zelando pela obediência estrita à Constituição.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em declarações recentes tem escancarado a situação falimentar do governo Dilma Rousseff (e do antecessor Luiz Inácio Lula da Silva), principais responsáveis pelo descalabro político-administrativo hoje imperante.

Tanto Lula como os poucos agentes que insistem na reprodução de sua desgastada cantilena, fizeram tudo o que lhes possibilitou a falta de ética e a desfaçatez, no desmerecimento da persona política de FHC, lançando sobre ele a mal-ajambrada pecha da “herança maldita”. Poucos anos depois, decerto rangem os dentes ao constatar que a grande figura política do momento no país, a voz da consciência nacional é – exatamente – aquele que maldosamente tentaram execrar.

FHC tem repetido que o remédio para a reconstrução do país é a renúncia da presidente da República, porém, ressalvando com sabedoria que tal atitude requer “grandeza” para ser tomada.

O papa Bento XVI renunciou a posição de chefe da “instituição que arroga a si ter o mais antigo e significativo título de legitimidade, colocou em questão, com sua decisão, o próprio sentido do título”, escreveu Agamben. A Igreja, com seus 20 séculos de história, simplesmente seguiu as ordenações canônicas e convocou suas instâncias decisórias, especialmente o Colégio dos Cardeais, e um novo papa foi eleito pela maioria. A Igreja prossegue sua marcha, da mesma forma como o governo brasileiro (guardadas as proporções) tem agora a oportunidade de redesenhar sua trajetória, reconciliando-se de uma vez por todas com a sociedade que o sustenta.

Entrementes, uma decisão extrema como foi a recusa máxima de Joseph Ratzinger requer grandeza pessoal, mercadoria que anda escassa nas prateleiras desse brechó institucional em que o Brasil do século 21 foi transformado.

Uma ideia sobre “Um gesto e sua grandeza

  1. Clint Eastwood

    Data vênia caro Ivan, esperar grandeza de político é o mesmo que exigir honestidade de homem público, se morre esperando.

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