por Ivan Schimidt
“Aparece tanta gronga boiando nas águas barrentas em que navego contra a maré, que meu patuá de fé e de valia já anda até entortado. Nas quebradas do mundaréu, lá onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos, nos atalhos esquisitos, estreitos e escamosos do roçado do bom Deus, vive o povão lesado da sociedade, que, apesar de tudo, é generoso, apaixonado, alegre, esperançoso e crente numa existência melhor na paz de Oxalá”.
Somente essa fala pronunciada na abertura da peça Humor grosso e maldito nas quebradas do mundaréu, que estreou no dia 1º de agosto de 1972, no Teatro de Arena, em São Paulo, seria suficiente para resumir a linguagem eivada de gírias e palavrões presentes tanto nas peças e livros que escreveu, quanto nas conversas mais banais com estivadores, mendigos, engraxates, marreteiros, punguistas e prostitutas.
Estou falando de Plínio Marcos Barros (1935-1999), que teria atualmente 80 anos se um estilo de vida despreocupado com a saúde não tivesse precipitado a debilidade física que o levou a sofrer dois violentos acidentes vasculares cerebrais, em novembro de seu derradeiro ano.
Nascido em Santos (SP), no dia 29 de setembro de 1935, o pequeno Plínio mal aprendeu a ler e escrever escapuliu da escola preferindo a praia, os campinhos de várzea e o cais do porto, onde se diplomou na verdadeira escola da vida, como sempre repetiu até morrer. Artista de nascença tentou jogar futebol como profissional, mas logo depois do serviço militar na Aeronáutica parece ter atinado com sua verdadeira vocação.
Ainda jovem começou a trabalhar em circo vivendo as estripulias do palhaço Frajola e também a participar como ator de peças de teatro amador. Em 1958, numa dessas peças, conheceu ninguém menos que Patrícia Galvão, a famosa Pagu, que havia sido casada com Oswald de Andrade e agora era mulher do jornalista Geraldo Ferraz, convidado para dirigir um grande jornal em Santos.
A ligação com o casal foi imediata e, a essa altura, Plínio havia escrito sua primeira peça (Barrela), cujo manuscrito guardava enrolado em folhas de papel almaço no bolso de trás, ansiando pelo momento de mostrá-lo a Pagu.
Segundo Oswaldo Mendes em Bendito maldito, uma biografia de Plínio Marcos (Leya, SP, 2009), “a maioria daquela moçada, no entanto, não tinha ideia da atribulada e fascinante história da mulher que se vestia de modo extravagante, juntando peças de cores abusadas, boina na cabeça, fumando e bebendo muito – e em público! – um hábito nada feminino na época. Para os jovens que a cercavam, não interessavam detalhes de sua importância na arte e na cultura na primeira metade do século. Bastava conviver com aquela mulher fora dos padrões, ousada, falante, culta, que os aproximou também de Geraldo Ferraz, consagrado em 1957 como um dos grandes da nossa literatura ao publicar o romanceDoramundo”.
Numa animada roda de papo numa das mesas do Bar Regina, entre muitos cigarros e copos, Plínio esperou o momento certo e puxou do bolso a maçaroca entregando-a Pagu. A reação foi melhor que a esperada. “A Patrícia leu e falou: ‘Porra, o diálogo dessa peça é violentíssimo’. Era só palavrão, eu não conhecia palavras, só conhecia palavrão”, diria Plínio mais tarde.
A peça que contava a história de um pivete estuprado na cadeia pelos outros presos, segundo Pagu tinha o mesmo impacto dos dramas concebidos pelo gênio de Nelson Rodrigues (que Plínio nem sabia quem era), mas conheceu logo pela leitura das crônicas diárias “A vida como ela é”, escritas para a Última Hora, do Rio de Janeiro.
Imediatamente proibida pela Censura, Barrela “foi liberada para uma única apresentação, por ordem do presidente da República, Juscelino Kubitschek. Dizem”, comentou Mendes, garantindo que até mesmo Plínio veiculava a versão mais tarde corrigida por ele próprio (em 1976), quando a peça foi editada: “O Paschoal Carlos Magno mandou, do Rio de Janeiro, um telegrama autorizando a montagem da peça, pelo menos uma vez. Como o telegrama vinha com o timbre da Presidência da República, a Censura se acanhou”.
Assim, graças a Paschoal e a Juscelino, Barrela fez sua estreia e despedida no auditório do Centro Português de Santos, em um festival de teatro amador da cidade. O depoimento de Plínio foi o seguinte: “Ainda trago comigo o som dos aplausos daquela noite. O teatro estava lotado. No final, todos aplaudiam de pé, gente chorava e o nosso elenco chorava junto. Jamais em minha vida se repetirá uma noite como aquela, jamais saberei o que é o sucesso novamente. Mas naquela noite estava selada a minha sina”.
Daí ao envolvimento total com o teatro foi um pulo muito rápido e esse clima acabou propiciando o encontro com a jovem Walderez Martins, estudante de filosofia na USP e atriz principiante. Dividido entre Santos e São Paulo, os contatos de Plínio com o pessoal de teatro davam-se em bares e restaurantes após as apresentações, prolongando-se a conversa até o amanhecer.
A vida não era mole para Plínio Marcos, que quando em São Paulo morava onde o acaso o abrigasse: “No começo dormia na estação rodoviária e passava o dia em volta do Teatro de Arena, mais precisamente no Bar Redondo”, registrou o biógrafo.
No dia 16 de dezembro de 1963, num cartório do Ipiranga e em cerimônia que não durou nem cinco minutos (o juiz estava apressado para uma pescaria), Walderez e Plínio se casaram “de papel passado” como exigia a mãe da moça.
No domingo seguinte, o casal Cacilda Becker e Walmor Chagas, uma das duplas mais badaladas da ribalta paulistana na época, patrocinou uma segunda comemoração em seu apartamento na avenida Paulista: “À luz de velas, Walderez e Plínio entraram como se entrassem numa igreja, com direito ao ator Fredi Kleemann vestido de padre a recebê-los e abençoar a união sob os olhares cúmplices do elenco de Onde canta o sabiá”.
Com o golpe de 64, muitas peças em cartaz foram proibidas e Plínio não foi o único autor a sofrer a violência. A classe se reuniu no Teatro Oficina “para redigir um manifesto ao presidente Castelo Branco, pedindo a liberação das peças”, acreditando que as relações amigáveis do marechal com a escritora Raquel de Queirós, cearense como ele e seu gosto pelo teatro ajudariam.
Anos depois (julho de 1977) Plínio falou do incidente em entrevista ao Folhetim da Folha de S. Paulo: “A classe teatral não deixou entrar nem a minha peça, nem a do César Vieira, nesse manifesto, porque eles achavam que podia dar a impressão de que a gente era autor querendo aparecer. O Castelo Branco liberou, então, as outras dez peças e a minha e a do César ficaram proibidas para sempre”.
Com o auge da repressão, a barra pesou para Plínio que tinha as peças proibidas pela Censura e acabou perdendo a grana recebida por suas colaborações na imprensa. Foi então que optou pela literatura, editando os próprios livros que vendia em palestras e depois nas ruas e portas de teatro. O depoimento de Plínio sobre essa fase é tocante: “Graças a Deus, tenho o orgulho de dizer para os meus filhos que nunca, em tempo algum, eu os usei como desculpa para não participar da vida. Nunca me privei de porra nenhuma, de viver a minha vida por causa deles, alegando a existência deles como desculpa para não participar. Tem gente que vive alegando que mulher e filhos são o estorvo deles. Eu, não”.
O autor de Barrela, Querô, Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne (sua obra prima) e muitíssimas outras peças, além dos livros que ele próprio vendia, Plínio Marcos Barros à semelhança de Ivan Karamazov, personagem de Dostoievski, um ateu que escrevia artigos sobre teologia, bem que poderia ser admitido como “membro dessa companhia de elite dos malditos”, para palmilhar uma feliz constatação de Terry Eagleton em Doce violência (Unesp, SP, 2012).
A estreia de Dois perdidos no Rio, com os atores Fauzi Arap (Tonho) e Nelson Xavier (Paco), rendeu a crítica assinada por Fausto Wolf na Tribuna da Imprensa: “É o espetáculo mais importante do ano, dos que assisti até agora. Trata-se de uma aula de teatro, uma aula de interpretação onde a emoção dá lugar à crítica e vice-versa. Poucas vezes vi dois atores dissecarem de tal maneira dois personagens e, ainda assim (tamanha é a força do texto) deixarem um sem número de dúvidas à plateia. Fauzi e Nelson tentaram – com sucesso, pois que não há uma falha no espetáculo – dirigir-se a si mesmos. A experiência foi brilhante”.
Pois esse brasileiro genial que até o final da vida ganhou o sustento vendendo os próprios livros, porque jamais conseguiu publicar seus textos pesadíssimos, diga-se de passagem, por uma editora de expressão (hoje estamos cheios de baboseiras em variados tons de cinza), nunca se curvou à indústria cultural dominante.
Se estivesse vivo, observando do alto de seus 80 anos a cena digna do mais escrachado melodrama que um país pode viver, Plínio Marcos certamente continuaria fiel a um dos ditos que mais apreciava: “Não adianta o estrilo do pessoal da arquibancada porque ele jamais vai influir no resultado do jogo”. Pano lentíssimo…
Bonita e merecida homenagem, grande Ivan. Plínio também é um dos meus personagens favoritos – e de um livreto que já sonhei editar e que, como todos os demais, ficou apenas no sonho. Há dois episódios na vida dele que merecem ser também lembrados:
1. Na estreia do “Dois Perdidos numa Noite Suja”, no Arena, só tinha na plateia a mulher do Ademir Rocha; a então mulher de Plínio, a atriz Walderez de Barros; e um bêbado, que não queria sair de jeito nenhum. Plínio pensou em dar uma porrada nele. Mas não deu: ele tinha sido o único a pagar o ingresso.
2. Quando foi preso, por ordem da “redentora”, Plínio achou que o que tinha que fazer ali era reclamar. Chamou o carcereiro e foi perguntando: “Porra, não tem café nesta merda?”. A resposta: “Aqui é quartel, acorda às 7 horas e tu recebe um cafezinho”. E o Plínio: “Vai tomar no cu, que eu não sou soldado, sou artista e acordo às 10 horas!”. Mais tarde, durante o interrogatório, foi outro espetáculo. “Por que escreveu essa peça?” – quiseram saber. “Que peça?” – indagou. “Essa dos militares gorilas”. “Ah, eu queria humanizar o exército”.