por Fernanda Torres
Onze de julho de 2015, primeira sessão de sábado da volta de “A Casa dos Budas Ditosos” ao Rio de Janeiro. Ataco o trecho final da confissão da baiana 358 dias depois da morte de João Ubaldo Ribeiro e 12 anos contados desde a noite de estreia.
Ousei cumprir minha vocação libertina, eu dizia, quando fui interrompida por um estrondo na coxia direita. Parecia uma porta batendo, ou algo tombando no chão com violência. Virei-me para trás e perguntei, mantendo o sotaque, se tinha alguém ali. Não obtive resposta.
O público emudeceu surpreso. Ninguém percebeu o barulho. Desconcertada, retomei o raciocínio, mas perdi o ritmo da estocada final.
Na saída, em reunião com a produtora Carmen Mello e o diretor de cena, confirmei a suspeita de que a plateia não ouvira nada estranho. Curiosos, vasculhamos o palco.
A porta que dava acesso à ribalta continuava fechada por dentro e nenhum objeto saíra do lugar. Mistérios do teatro. Fui dormir sem pensar no assunto.
No dia seguinte, Carmen, que crê no além, me telefonou para dizer que dera falta da cadeira durante a busca. “Que cadeira?”, perguntei. A cadeira, disse ela; e contou que, certa vez, jurara a Ubaldo que eu faria o espetáculo até completar os 68 anos da personagem. “Pois deixe meu lugar reservado”, respondeu o autor, “faço questão de estar presente”, e Carmen garantiu que haveria sempre um lugar para ele.
Agora, na primeira temporada sem a presença do imortal no planeta, ela, em segredo, cumprira o prometido, deixando uma cadeira vazia com vista para o palco na coxia direita. “Um contrarregra desavisado retirou a dita, mas já mandei devolver”, assegurou a produtora, “não haverá mais sobressaltos ruidosos”.
Eu tenho uma visão pragmática da morte, mas naquele domingo, concentrada para o terceiro sinal, pressenti a figura do Ubaldo a me fitar na escuridão. Autossugestão, sem dúvida, mas a partir daquela noite, ele nunca mais deixou de estar sentado ali, na famigerada cadeira.
O mesmo acontecera com meu pai, logo após sua morte. Sozinha, pouco antes de entrar em cena, senti, ou projetei, que ele zelava pela filha na penumbra da terceira tapadeira. Era um lugar natural dele estar, onde sempre esteve, desde que me entendo por gente.
Iluminada pelo refletor, caminhei em direção à mesa, acompanhada do Ubaldo e do Fernando imaginários, quando um terceiro vulto veio se juntar à dupla: Antônio Abujamra.
Em “D’A Gaivota” –versão da peça de Tchekhov que fiz com ele, Matheus Nachtergaele, minha mãe, Nelson Dantas e Celso Frateschi–, Abujamra costumava se sentar escondido na lateral da ribalta, para observar as cenas entre Nina e Treplev. Eu tinha a mania de me virar de costas para o público, covardias de atriz, e o bruxo, com ares de reprovação, apontava para a plateia com o indicador, exigindo que eu a encarasse de frente.
Prestes a dar início ao solilóquio da devassa, deixei que Abujamra acompanhasse os dois, mas foi com Ubaldo que fiz o espetáculo. Impossível descrever a sensação quase palpável de tê-lo ao meu lado. Difícil explicar os gatilhos que essa ilusão detona no ator, a maneira como muda o significado das palavras e enche de sentido a representação.
Embalada pelo trio, eu pensava nos futuros espectros que ainda me rondariam em cena e ponderava se, algum dia, eu teria a grandeza de me transformar numa aparição semelhante para um ator, ou atriz que, por ventura, eu viesse a amar, ou influenciar.
Os 12 anos passados foram como um longo ensaio para chegar até esta curta temporada no Rio. A morte do Ubaldo, a voz dele gravada a ecoar pelo palco sem o corpo presente, a consciência do tempo e das memórias acumuladas, os meus fantasmas de Hamlet. Nada disso existia antes.
O teatro é uma experiência física, mas sobretudo mental, que depende da capacidade do ator de projetar seu delírio para o público presente. É um ofício que se aprende na prática, na hora, com o espírito e na presença de espíritos.
Estou chegando aos 50. Encaro o envelhecimento do corpo, a traição dos hormônios e descubro que a alma também amadurece, cresce, se expande, guiando o ator na intangível tarefa de se ver livre de si mesmo.
*Publicado na Folha de S.Paulo
Eu acho a filha melhor que a mãe,como atriz e comível.