por Álvaro Pereira Junior
“OK, Dave, me faça rir.”
Esse é meu amigo Jim, bebedor valente, aparecendo em casa para tomar a última cerveja Sam Adams e assistir a “Late Night With David Letterman”.
Depois da aula, Jim passa seus fins de tarde e noites em um botequim de irlandeses ao lado de casa, o Plough and Stars. E dá uma justificativa sociológica para as horas seguidas de álcool e ócio: “Gosto de ver a mudança de público, quando saem os operários da Irlanda e chega a molecada de Harvard”.
Região de Boston, virada de 1989/90. Eu e Jim estudamos não em Harvard, mas em outra faculdade ali perto, que a modéstia não me permite nomear. Jim vive em Somerville, meio fora de mão, e acha o máximo eu morar em Cambridge, vizinho a seu bar preferido.
Quando aparece em casa, a altas horas, ele sabe que vou estar sintonizado no programa de Letterman, na época na NBC, já que eu não falava em outra coisa na escola.
Vindo de um Brasil ainda mais isolado e provinciano que o de hoje, fiquei doido com o formato de “talk show” subvertido por Letterman e seus redatores jovens e delirantemente geniais: o monólogo inicial zoando o noticiário, as listas de “top ten”, os quadros de humor infame com animais esquisitos e crianças idem, as intervenções de comediantes de vanguarda (sempre muito novos e alucinados) e as entrevistas com celebridades do time AAAA.
As entrevistas: como aquilo era possível? Dave fingia mal prestar atenção no que as pessoas diziam, soltando uma ironia atrás da outra.
O infeliz ia lá promover seu novo filme, ou livro, e era bombardeado por perguntas que atiravam para todo canto, menos no que interessava ao entrevistado.
Com algumas pessoas, Dave nunca criou liga: Cher e Madonna os exemplos mais conhecidos. Com outras, sintonia total, como os comediantes Bill Murray, Steve Martin e Tina Fey.
E acima de todos, Julia Roberts, notoriamente difícil de entrevistar, mas que se derretia diante de Dave (e vice-versa). É fácil encontrar no YouTube coletâneas de selinhos –selões– dessa dupla.
Eu poderia preencher umas cinco páginas de jornal só com grandes momentos do programa, mas destaco dois, disponíveis na internet.
O primeiro, de 1986, quando ele avisou que, naquela edição, a imagem giraria lentamente, uns poucos graus por minuto, até completar uma volta, quando o show acabasse. Ao entrar o entrevistado, o ator Peter Ustinov, a tela já tinha rodado 90º, estava tudo de lado. No fim da entrevista, o giro atingiu 180º –ou seja, a imagem ficou de cabeça para baixo (http://is.gd/8dxNqL).
O outro é de 1996, quando ele foi “trabalhar” de atendente no “drive-thru” do fast-food “tex-mex” Taco Bell. Entre vários absurdos, disse o seguinte para um coitado que pediu o mais básico, dois tacos simples: “Desculpe, isso só sob encomenda. Vai demorar uma hora e meia” (http://is.gd/EDMQiE).
Descrevendo assim, pode dar a impressão de que Letterman é uma torre de firmeza e autoconfiança, mas a verdade é oposta. Anomalia psicanalítica, ele tem ao mesmo tempo ego e superego gigantescos.
É o cara que se expõe, que põe a própria mãe para ser “repórter” do programa, que faz todo um universo girar em torno de sua figura. Mas é também um autocrítico obsessivo, disparando piadas brutais contra si próprio.
Escrevo ao mesmo tempo em que ele faz sua despedida. Ouço: “Fizemos mais de 6.000 programas, eu estive presente em quase todos e posso garantir: uma porcentagem muito alta foi de porcarias”.
No show final, quarta passada, Dave não chorou, não engasgou. Pieguice zero. Despediu-se com um simples boa noite, enquanto os Foo Fighters tocavam “Everlong”, sua canção preferida.
David Letterman aposentou-se aos 68, cercado por concorrentes certinhos, de menos carisma, mas ultraconectados com multiplataformas e redes sociais: Jimmy Fallon, Jimmy Kimmel, Seth Meyers. Dave, ele mesmo admite, não sabe nem o que é um vídeo viral. Percebeu que era o único coroa do “late night”.
Decidiu parar.
Vou ter muita saudade. Até hoje, assistir a David Letterman era abrir de novo a porta para o meu chapa Jim, sentir o sabor maltado de uma Sam Adams bem fria, ter 26 anos para sempre.
No final do romance “A Invenção da Solidão”, Paul Auster resume: “Foi. Não será de novo. Lembre”.
Adeus, Dave.