Cine Curitiba, na rua Voluntários da Pátria, em 1950
por José Maria Correia
“ A memória é o paraíso do homem”.
Com o perdão do mestre Rubem Braga, que abominava os textos dos memorialistas, como escrever sobre Curitiba sem a evocação da memória?
Afinal são mais de sessenta anos de andanças e perdições, caminhos e descaminhos.
As esquinas que me viram jogando burico e correndo inutilmente atrás dos balões nas festas juninas, são as mesmas que escondem solidárias até hoje os ecos de minhas paixões adolescentes.
Esta a minha velha Curitiba, confidente única, a parceira do silêncio que comigo dividiu os roteiros juvenis e secretos de sentimentos ardentes e de tantas lágrimas vertidas por inocência e ingenuidade.
Com que saudades, Curitiba, vejo ainda nas fotografias do imaginário, os lambaris translúcidos povoando todos os rios da minha infância, águas cristalinas terminando em pequenas quedas e cascatas, domingos de futebol, campos verdes e multidões em tardes douradas de encantamento.
Como esquecer as doces manhãs de guarda-pós brancos, brilhando alvos como marfim nos pátios do 19 de Dezembro, do Julia Wanderley e do Belmiro Cesar ?
Quanta devoção pelas primeiras professoras, musas inatingíveis a criar sonhos febris e fantasias irrealizadas até hoje.
E que tempos os do Colégio Estadual, do esporte, do teatro, da música e da literatura, tudo tão diferente de hoje, da linguagem virtual minimalista, das decorebas em cursinhos massificados e vestibulares do marketing e do comércio.
Foi no Estadual, na antiga biblioteca, com a cumplicidade dos mestres e eruditos, que devorei “Os Subterrâneos da Liberdade” e toda a coleção de Jorge Amado, autor proscrito e no índex da ditadura militar que nos sufocava, mas não nos submetia.
E os roteiros underground: o voyeurismo de espiar as lindas modelos posando nuas nos porões da Biblioteca Pública, os olhos grudados nos vitrôs semi-abertos embaixo da rampa e as mãos nervosas nos bolsos das calças ainda curtas.
Levar as namoradas de surpresa na morgue da Universidade – e tirar proveito da imobilidade causada pelo terror da visão da morte mumificada em formol, para minutos de roubado erotismo.
Invadir à noite os porões e os labirintos de rituais de iniciação das lojas maçônicas, tentar decifrar as inscrições e os símbolos proibidos e finalmente a prova suprema de coragem, pular o muro do Cemitério Municipal à meia noite e atravessar sozinho de ponta a ponta, passo lento e sem pressa, entre assustadoras cruzes de bronze e sombrios anjos de pálido mármore iluminados por esquecidas velas e círios.
Essas proezas conferiam status, só não me perguntem quem criava tais desafios.
Depois, deixado o Estadual e já na Faculdade de Direito na Federal, vieram outros enfrentamentos, riscos maiores e nem sempre percebidos.
Em 1968 a tomada da Reitoria na luta pelo ensino público e gratuito, os muitos confrontos com a repressão, as passeatas que tomavam toda a Rua Quinze, paralelepípedos nas mãos, os comícios relâmpagos, as panfletagens e as pichações.
Quem caía protestando contra o arbítrio ficava recolhido, uma longa temporada na grade, quem não dançava e não era preso, resistia e na rua permanecia por conta e risco.
Essa foi a geração do mimeógrafo, dos manifestos de coragem e da utopia, da tinta spray e dos cabelos longos contra os tanques e blindados, as bombas e as torturas nos calabouços.
Contra os fuzis os cassetetes e os mosquetões com apenas os estilingues e as pedras como fazem hoje as crianças e os adolescentes na Palestina.
Olhando para esse tempo que não morre nunca, remanesço ainda um peregrino de todos os meus lugares santos, romeiro do antigo Bar do Pasquale cantado em prosa e verso pelo Dante Mendonça, a praia curitibana de sábado no Passeio Público.
Socorrido sempre fui nas emergências da fome pelo bar Triângulo e comensal de jantares intermináveis no Bar Palácio da Barão do Rio Branco onde mulheres desacompanhadas inexplicavelmente não eram admitidas.
E é na memória emotiva já fragilizada que ainda procuro todos esses lugares. Procuro eterna e inutilmente a minha taça de morango com nata, esquecida para sempre em alguma mesa de almoço de domingo com meu pai no restaurante Bar Paraná da rua XV.
Procuro, na dor da perda, meu pai, com um grito que não cala em meu coração e ecoa esses anos todos, cada vez mais sofrido, mas também mais próximo de silenciar.
Procuro minha juventude e a mim mesmo.
Procuro meu corpo jovem na imagem caleidoscópica multifacetada em cor neon- luxúria, criada pela Maria Japonesa na magia do quarto dos espelhos da boate 4 Bicos na Vila Oficinas.
No antigo Joaquim Américo à sombra dos pinheiros e nas arquibancadas de madeira ainda escuto os gritos a cada gol do furacão rubro-negro, o verdadeiro do Jackson e do Cireno, assim como escuto em meus sonhos de olhos abertos as batidas de pés no chão do Cine Curitiba a cada vez que arrebentava a já gasta fita do seriado do Fu-Man-Chu ou do Sombra (pam /pam/pam/pam/pam/pam.)
Cada vez que vou ao aeroporto ouço ao longe os metais da orquestra do maestro Genésio do dancing Águas Belas perto do primeiro motel, o 007 do pioneiro Cobrinha, e as sirenes assustadoras das viaturas em mais uma das intermináveis batidas policiais da Ronda do Delegado Paulo Lagos – e intuitivamente olho em volto em busca da proteção do armário em que, menor de idade, me escondia.
E no porão do velho Clube Curitibano ainda dá para escutar o eco do cantor Natinho em dueto com a paraguaia Perla da boate dancing Presidente, do grandão Coelho, Galopeiraaaa.
No fim da madrugada, lá no alto da Rua Visconde, encontrava o craque Zé Roberto tomando a penúltima e descrevendo para as meninas os gols que faria no dia seguinte, fugido da concentração e do velho técnico, o grande TIM, escondido na boate Caverna da Bruxa.
Quando chegava o carnaval no baile do Operário, suprema glória da viadagem curitibana , o decano Osvaldinho abandonava o banco onde reinava na Praça Osório seduzindo os soldados vindo do interior para triunfar no Gala Gay fantasiado de Candelabro Italiano, como no filme sucesso da época estrelado pela Suzane Pleshette e pelo Troy Donahue.
Em outra Rua, a Comendador Araújo, quase ao lado da Igreja Presbiteriana, estouravam nas panelas as pipocas do maitre Orlando na boate Gogó da Ema, metade milho, metade sal, para matar de sede os clientes, circunspectos doutores, e faturar mais alto nos drinques de claricol, campari e Sant Remy exigidos pelas meninas de programa docemente apelidadas de bailarinas, embora só bailassem na cama das espeluncas onde eram levadas pelos fregueses.
Quando a noite estava para acabar iam todas elas matar a fome com uma canja da madrugada e ouvir as histórias cheias de ironias, sabedoria, metáforas e advertências aos boêmios, platéia do velhote Perly na mesa redonda que dividia com o escritor Jamil Snege, no café do Hotel Colonial, o último refúgio da intelectualidade notívaga de Curitiba e que já fechou as portas há décadas.
O fato é que por onde andei tratei de marcar como sacras todas essas referências antigas.
As portas cerradas dos botequins e restaurantes que nunca mais serão abertas e que escondem em seu interior vidros coloridos e opacos com os mais preciosos tesouros de minha infância, balas de ovos, balas de banana de Antonina, as figuras do Zequinha, copos de capilé, biscoitos Lucinda e Maria Mole.
Só esta Curitiba única foi minha companheira de desabafos etílicos em madrugadas brancas de névoa e neblina entre rubros vômitos de Cuba-Libre, Gin e Hi-Fi.
Nas esquinas ficaram também as serenatas e os buquês de rosas recusadas, o bumbo silenciado do Fernandinho louco, o som do Rock Around The Clock, Elvis, Beatles e Rolling Stones, que se foram como o ronco dos escapes abertos das Kombis, dos DKWS e dos Gordinis fugindo das possantes motos Harley Davidson dos guardas Guerra e Pignatari, incansáveis atrás da gurizada.
E uma a uma as lembranças foram substituindo as ilusões dos amores que seriam eternos, das conquistas definitivas e dos amigos que durariam para sempre, mas já se foram sem despedida.
Os rios e riachos foram cobertos de concreto urbano como lápides, perderam a vida e o encanto, os bosques foram enterrados em cimento, tumbas de vidro e aço e as estrelas encobertas pelas luzes artificiais desistiram de pedir socorro.
E os cinemas, ah os cinemas esses são os insubstituíveis, o velho Luz com os cartazes de Sansão e Dalila pintados à mão pelo artista o investigador Maciste, o Avenida com os épicos, entre eles os Dez Mandamentos que tanto me impressionou, as matinadas do Ópera com os desenhos depois da missa e a as matinês do Palácio com as comédias água com açúcar de Dóris Day e Rock Hudson, estranhamente adorados por Paulo Francis, embora de péssima qualidade e sem nenhum conteúdo.
Nas bombonieres se buscava um drops Dulcora a delícia que o paladar adora, balas de chocolate e azedinhas , e life savers. Tudo era diferente, mágico e apreciado
O destaque era o gigante cine Vitória, que foi o nosso Chinese Theater, tão louvado pelo cronista misógino da Tribuna, o E.G.C., sempre impecável em sua inseparável capa de gabardine italiano e que ciceroneou Janet Leigh e Karl Malden depois de um festival organizado por ele com direito a um jantar na Confeitaria Iguaçu – e nunca mais artistas consagrados de Hollywood visitaram Curitiba.
Dos velhos e grandes cinemas transformados em bingos, igrejas mercenárias e estacionamentos decrépitos restaram só fotos e cartazes desbotados como se fossem figurinhas coladas para sempre nas páginas do álbum de minha alma melancólica.
E de tanta perda, salvo apenas as lembranças, já que procuro ainda e desesperadamente, os meus mortos todos.
Procuro a todos esperando inutilmente que um dia renasçam ou desmorram para me fazer companhia, ou deverei partir eu, já que de cada um deles e desses lugares queridos sou muito precisado para reencontrar a minha cidade. Mas procuro também os vivos e a coragem de gritar bem alto quanto eu os amo e que a vida seria impossível sem cada um dos que restaram e dos que vieram depois.
Esta procura termina sempre, em silente exaustão, naquele que um dia fui.
E assim, já que o tempo não volta mesmo e as pessoas não se desencantam fico com a alternativa única de que falava o poeta Rylke: viver apenas o que resta.
Amparado com a esperança demencial a que se referia sempre Ernesto Sábato.
Viver, tentando compreender tudo como um recomeço e não um fim de linha.
E me convidar e ao companheiro de leitura para a interminável gravidez do mundo, onde todas as manhãs, apesar de tanta desesperança, há um radiante parto de luz e um esperado reencontro com amores, ilusões e seres, que apesar de perdidos para sempre ainda habitam em cada um de nós.
Pesam em nossos destinos , zumbem em nosso sangue e de quando em quando emergem, repetindo-se em nosso gestos, textos e palavras – e parece que os imitamos para nos aliviar e consolar.
E prosseguir, nada mais, somente prosseguir .
Quanta lembrança, parece que abriu vários arquivos que estavam guardados no porão de minha memória, parabéns José Maria Correa, te agradeço pela emoção que estou sentindo neste momento, seu texto é real e retrata toda minha juventude nos anos 60/70.
um belo texto denso e evocativo. uma saudade renovada no presente, pessoas vivas e mortas confundidas no soluço de viver no meio, entre o passado e o futuro, tudo se concretiza no hoje – rico de memorias e possibilidades .
parabens, um abraço dos que te conhecem e admiram desde a ermelino leão. cesar muniz
Parabéns. Belíssimo texto.
Poderia ter sido eu o autor desse texto, José Maria . Viajei em meus tempos de menino, quando morava na Alameda Cabral, ao lado da Oficina do Vadeco. O Sr. Armando Penteado não era vizinho desta Oficina? E você estudou na Cultura Inglesa? Abraço