4:45Ilusão

por José Maria Correia
                                                                                                 
Eu vestiria  minha mãe com as pérolas mais raras e a cobriria com uma tiara de diamantes .
Depois a levaria passear em uma carruagem com uma parelha de cavalos brancos com guirlandas de flores, como em um conto de fadas e princesas, tudo  para poder ver de novo aquele sorriso que nunca mais vi nem encontrei .
E  aí, findo esse  dia de encantamento, ao entardecer eu iria visitar minhas namoradinhas do Grupo Julia Wanderley em meu tapete voador.
Nesses meus sonhos eu ainda embarcaria no Nautilus, o submarino do Capitão Nemo em busca das vinte mil léguas submarinas de Julio Verne – e depois  viajaria para muito longe, para a Índia e a China  dando a volta ao mundo no balão do aristocrata inglês  Phileas Fogg e seu criado Passepatour.
Ah! que bem me fez a inexistência da televisão e a companhia dos livros infantis e juvenis.
Meu tempo era dividido entre a escola, as brincadeiras na rua de saibro à beira do rio Ivo e os muitos livros e coleções de  gibis que nunca faltaram.
Comecei com as historinhas do Tico-Tico, com o Reco Reco, o Bolão e o Azeitona, minhas primeiras leituras ainda soletrando .
Depois conheci a selva com Mowgli, o menino lobo de Kipling, e Tarzan o homem macaco de Edgar Burroughs, onde  aprendi também que o animal pode ser solidário com o seu predador, o homem.
Era na hora do jantar que  eu esperava  o pai chegar e logo  corria para ler as figurinhas do jornal O Globo – Mandrake o mágico, Dick Tracy, Charlie Chan  e o Fantasma  Voador, de Lee Falk, com suas duas  pistolas 45  e o anel de caveira, sonho de consumo de toda criança da minha geração.
Nessa época, final dos anos cinquenta, eu já tinha passado a fase de Walt Disney e do Peter Pan de J. Barrie , mas a metáfora da eterna infância  e da Terra do Nunca ainda permanece em mim, em minhas memórias, como um paraíso perdido.
Já não tenho ilusões, nem vi chegar jamais  a carruagem e as jóias que eu prometera para a mãe aos cinco anos, época da inocência; a cobri na despedida apenas com um ramo de flores silvestres de nosso jardim, como ela havia pedido antes de partir para sempre.
O que era ilusão e fantasia como a Ilha do poeta, hoje é apenas saudades , amor e sentimentos.

Ilusões são as quimeras da vida, quimeras de homens e mulheres como os amores perdidos e as lembranças que nos acometem sempre  entre crepúsculos e raios de sol que adormecem para voltar sempre ao amanhecer.
Ainda tenho o baú com os gibis dos heróis infantis do suplemento juvenil e a coleção de livros que guardo com carinho, edições raras traduzidas com o talento de Monteiro Lobato e Manuel Bandeira.
Do Tarzan vi todos os filmes, até os do cinema mudo, em um projetor do antigo Cine Sereia, em Matinhos, onde as ondas da maré cheia faziam a sonoplastia e inundavam com espumas  a tenda improvisada à beira-mar na Praia Central.
Minha academia da sétima arte foi o Cine Curitiba, onde aprendi que é possível sonhar de olhos abertos e por vezes driblar a realidade na sala iluminada pelos bastões incandescentes de magnésio.
De realidade não entendo muito, não nasci para isso, para essas lidas complicadas.
Sou fiel ao cinema, às letras ,suas fantasias e romances.
Gosto da utopia de Cervantes e seu Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura sempre com ânimo e espírito renovado a cultivar e renovar suas ilusões de enfrentamentos imaginários com  seu esquálido e fiel Rocinante.
Não estou sozinho, o Quixote é o livro mais lido, perde apenas para a Biblia nas cabeceiras e nas horas mais tardias.
Em minha memória é que  está minha Passárgada, ao alcance de um fechar de olhos , e onde  todos que me foram importantes ainda me acompanham.
Por isso  é que busco o mar e a praia deserta, espaço de reflexão  onde as sereias e os gnomos cuidam  bem dos sonhos e dos encantamentos.
E na noite estrelada entre constelações e galáxias, não desisto de buscar o rastro do foguete de Flash Gordon em direção ao planeta Mongo com a sua Dale Arden.
Sei que não há chance desses reencontros mágicos, a não ser que surgisse um dia diante de mim a máquina do tempo do Professor Papanatas.
E assim me resta  apenas caminhar e marcar a areia com meus passos  que logo desaparecem esquecidos  entre os ventos a restinga e as dunas, como se eu não tivesse estado lá, não existisse.
É ali, longe da selva de pedra, entre o azul profundo do mar antigo de meus ancestrais  e a montanha mágica da Serra da Prata, que em absoluta solidão, como um Crusoé de Daniel Defoe, sonho, escrevo e  deixo minhas pegadas que são como essas letras, sinais sem rumo e sem sentido, vaga percepção  que não seja outra, senão a angústia .
Um rito de busca  e nostalgia que me faz retornar sempre aos mesmos lugares e ao  tempo perdido – e caminhar com um travo doloroso no peito, essa sensação de vazio existencial , de incompletude , de perdição que todo homem, toda mulher carrega sem saber o que lhe falta, nem onde buscar.

2 ideias sobre “Ilusão

  1. Ivan Schmidt

    Parabéns José Maria. Esse retorno a um passado nostálgico e comum a tantos de nós que já temos cabelos brancos (se é que ainda os temos), me fez lembrar daqueles tempos que não mais voltam… até hoje tenho na memória o dia (era o ano de 1950) em que vi pela primeira vez exemplares do Globo Juvenil, de O Guri, Capitão América e outos gibis… e os velhos seriados (o perigo vinha sempre na última cena do episódio) que a gente assistia no cine Carlos Gomes, o “poeira” como era chamado pelos lageanos de então… Para repetir uma frase de Faulkner minha impressão é que “esse passado nem chegou a acontecer”…

  2. Reinaldo de Almeida Cesar

    Belíssimo texto ! O mesmo raciocínio lúcido – e translúcido – e a mesma sensibilidade humana que tanto caracterizam os escritos do nosso José Maria, um craque no batuque do teclado. Fica apenas devendo (para todos nós, seus amigos e admiradores) organizar, sistematizar e, enfim, publicar a coletânea de tudo o que já escreveu !!!

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