de Rubem Fonseca
Manhã quente de dezembro, rua São Clemente. Um ônibus atropelou um menino de dez anos. As rodas do veículo passaram sobre a sua cabeça deixando um rastro de massa encefálica de alguns metros. Ao lado do corpo uma bicicleta nova, sem um arranhão.
Um guarda de trânsito prendeu em flagrante o motorista. Duas testemunhas afirmaram que o ônibus vinha em grande velocidade. O local do acidente foi isolado cuidadosamente.
Uma velha, mal vestida, com uma vela acesa na mão, queria atravessar o cordão de isolamento, “para salvar a alma do anjinho”. Foi impedida. Com os outros espectadores, ela ficou contemplando o corpo de longe. Separado, no meio da rua, o cadáver parecia ainda menor.
Ainda bem que hoje é feriado, disse um guarda, desviando o trânsito, já imaginou isso num dia comum?
Aos gritos uma mulher rompeu o cordão de isolamento e levantou o corpo do chão. Ordenei que ela o largasse. Torci seu braço, mas ela não parecia sentir dor, gemia alto, sem ceder. Eu e os guardas lutamos com ela até conseguir tirar o morto dos seus braços e colocá-lo no chão onde ele devia ficar, aguardando a perícia. Dois guardas arrastaram a mulher para longe.
Esses motoristas de ônibus são todos uns assassinos, disse o perito, ainda bem que o local está perfeito, da para fazer um laudo que nenhum rábula vai derrubar.
Fui até o carro da polícia e sentei no banco da frente, por alguns momentos. Meu paletó estava sujo de pequenos despojos do morto. Tentei limpar-me com as mãos. Chamei um dos guardas e mandei trazer o preso.
No caminho da delegacia olhei para ele. Era um homem magro, aparentando uns sessenta anos, e parecia cansado, doente e com medo. Um medo, uma doença e um cansaço antigos, que não eram apenas daquele dia.