por Nelson Rodrigues
Amigos, na belle époque, houve a Grande Exposição Internacional de Paris. Todo mundo se fez representar, desde os peles-vermelhas americanos até os esquimós. Para nós, era o tempo da peste bubônica, de febre amarela, da varíola e outras.
Hoje, algum patriota que ande por aí está chorando por uma medalha. Mas nem todos choram. Há os que dizem: — “O Brasil tinha que perder, não podia ganhar.” Vejam vocês e tremam: — ainda se dá razão à derrota. Por isso, digo eu que o narcisismo aqui é às avessas: — o sujeito cospe na própria imagem. Mas volto ao princípio do século.
O Brasil foi representado por uma caixa de fósforos. Para nossa felicidade, uma caixa de fósforos. Ninguém aqui estava esperando nada de tal exposição. De repente, não mais que de repente, como diz o poeta, explodiu a notícia: — a caixa de fósforos ganhará uma medalha.
A medalha que, hoje, choramos conquistamos na belle époque. Amigos, era outro o mundo, outro o Brasil, outra a realidade brasileira. E mais: — ninguém, aqui, tinha vergonha de ser patriota. Tinha-se, inversamente, a vergonha de não o ser. E quem não, fingia sê-lo, com ardores inéditos.
Mas o que é que eu estava dizendo que já me esqueci? Ah, já sei: — foi sublime. Nas ruas, o nosso patriotismo dava arrancos triunfais de cachorro atropelado. Quando três brasileiros se juntavam, começavam automaticamente a cantar o hino nacional. E preparou-se a recepção à nossa patrícia.
Já escrevi, a respeito, umas quinze vezes. Permitam-me a monotonia patriótica da repetição. A gloriosa caixa de fósforos veio de navio, já que não podia vir a nado.
Desembarcou ali, na praça Mauá (que eu não sei se já era Mauá). O povo a carregou no colo até o táxi aberto que a esperava. Sentou-se na capota, como uma garota dos Pierrots da Caverna, e assim veio, a uma velocidadede lesma, pela avenida abarrotada. No meio da avenida, os estudantes atrelaram-se ao automóvel e o puxaram bravamente. Das sacadas, choviam casca de tangerina, papel picado e listas telefônicas.
Contei o velho episódio para mostrar o abismo das duas épocas: — uma, patriota, da cabeça aos sapatos; outra, indiferente à pátria e suas derrotas. Eu gostaria de chamar a atenção dos meus leitores (se é que os tenho, eventuais ou permanentes). Chamar a atenção para um problema que me parece gravíssimo: — não se improvisa uma derrota. O sujeito já era derrotado antes do jogo.
Por exemplo: — nas redações. Nas horas de Copa ou de Olimpíada, a direção devia chamar os redatores: — “Como é? O Brasil perde ou ganha?” Em 58, na véspera de Brasil x Rússia, perguntou a um comuna: — “Quem ganha, Brasil ou Rússia?” Resposta: — “Ganha a Rússia, porque o brasileiro não tem caráter.”
Ora, o jornal precisa saber se o sujeito vai torcer contra ou a favor do Brasil. Dirão os idiotas da objetividade: — “Ninguém torce contra o Brasil.” Doce e ledo engano. Há os que torcem contra e babam na gravata, de puro deleite, na hipótese da derrota.
É o sujeito que não acredita no Brasil, nem deseja a sua vitória, não pode viajar até o Méier. Bem sei que muita gente acha que a história da caixa de fósforos é uma divertida e delirante fantasia. Antes o fosse. Direi que, pelo contrário, pela primeira vez um sentimento de grandeza uniu os brasileiros.
Outro exemplo: — na Copa de 38. O brasileiro foi mais patriota do que no episódio da caixa de fósforos. Houve o jogo contra a Itália. Perdemos de 2 x 1. E o brasileiro urrava nas esquinas e botecos. De repente correu que o jogo fora anulado. A cidade delirou. Outra vez, aconteceu esta coisa linda: — sempre que se juntavam três brasileiros, rompiam a cantar o hino nacional.
* Publicado no jornal O Globo em 30/7/1976