O editorial do jornal Gazeta do Povo sobre a legalização da maconha (ler abaixo), causou reações – a maioria dos usuários que, em brasileiro, são chamados de maconheiros. Quando se escreve sobre drogas, sejam ilegais ou legais como o álcool, a falta de informação e conhecimento sobre o assunto é gritante. Há também um outro fator que é possível se notar claramente fora e dentro das clínicas de recuperação: o preconceito contra todos ou este ou aquele tipo de droga – e os que fazem uso delas. Qualquer uma pode levar à dependência – maconha aí incluída. Toda pessoa tem liberdade para fazer uso de substâncias, mas precisa saber dos riscos que corre. Ou seja, de que, por um motivo ou outro, pode abreviar o tempo de vida e, além disso, deixar toda a família doente também, pois lidar com drogados é uma experiência que ninguém deveria desejar para o próximo. Saber onde o tal de uso recreativo pode levar é a base para se começar a pensar a respeito. Dentro das clínicas, para onde vão os que estão doentes e que têm a grande chance de voltar a ter controle sobre as próprias vidas, é comum ver alcoólatras se achando “melhor” do que um cocainômano – e vice-versa. Qual a diferença? Sim, há drogas que, para algumas pessoas, não causam dependência, como o álcool que, dentro do universo de bebedores, “carimba” 10%. Há usuários de cocaína que a colocam na circulação sanguínea apenas socialmente, ou seja, numa festa a cada 15 dias, e conseguem guardar meia de uma grama para a próxima ocasião. A maconha torna-se um vício quando quem a fuma precisa dela para enfrentar o dia, conversar com alguém, fazer sexo, etc. Causa, sim, vício – e quem já viu um dependente crônico da erva sabe que ele só falta babar e demonstra claramente ter o cérebro afetado pela quantidade de baseados que fumou na vida. A política policialesca de combate às drogas é patética, ineficaz e cara. Se droga fosse ruim ninguém experimentava. O que vem depois é o que se tem de saber antes – assim como a necessidade de haver condições para que todos que atravessaram a fronteira do vício possam ter a chance de se recuperar. Legalizar tudo? Por que não? A proibição é outro fator que aguça a curiosidade, principalmente dos jovens. O álcool é a droga que mais mata, principalmente porque quem bebe e dirige ceifa vidas de quem não tem nada com isso, além de deflagrar a violência conhecida principalmente nos casos que acontecem dentro das famílias. A prevenção é o melhor caminho para se alertar sobre todos os riscos que uma pessoa corre. No Brasil se faz muito pouco disso. E a discussão sobre o assunto vira bate-boca inócuo.
Maconha legalizada
Quando um Estado facilita ou mesmo estimula um hábito pernicioso, trabalha no sentido contrário ao do bem comum
O governo do Uruguai já apresentou as normas que devem reger a produção e venda de maconha no país. Pela regulamentação, cada consumidor poderá comprar até 10 gramas da droga por semana, o que é suficiente, em média, para confecção de 10 cigarros. O produto poderá ser adquirido em farmácias, consumido através da associação a um “clube de consumo” ou cultivado em casa. Para controlar a venda, serão registradas as impressões digitais de cada usuário. Embora nem tenha efetivamente começado a funcionar – a previsão é que a venda da droga em farmácias comece em dezembro – a legalização da produção e consumo de maconha no Uruguai foi saudada por alguns setores como sendo “revolucionária”, um “exemplo” para outros países. No Brasil, o deputado federal Jean Wyllys (PSol-RJ) não esconde de ninguém que se inspirou na legislação uruguaia para elaborar seu projeto que legaliza o consumo de maconha e perdoa os traficantes da droga. O deputado Eurico Júnior (PV-RJ) também apresentou um projeto semelhante.
Pode ser que o Estado uruguaio tenha estabelecido a quantidade ideal – de 10 gramas – para consumo. Os usuários comprarão sua cota semanal de droga nas farmácias sem precisar recorrer a traficantes de maconha, cujo número poderá diminuir ou mesmo se extinguir. Poderá também haver estímulo ao comércio local e até aumento da arrecadação de impostos. Caso seja esse o cenário uruguaio daqui a alguns anos – tempo necessário para se avaliar minimamente os efeitos da legislação –, a liberalização das drogas será apresentada como a panaceia social da vez. Afinal, que país não desejaria de um só golpe minar o tráfico de drogas e estimular a economia interna? O problema é que esse aparente “sucesso” seria construído a um preço muito alto.
Não há como fugir da constatação de que a maconha nada mais é do que uma droga. Chamá-la de “substância recreativa” chega a ser irônico. Seu uso provoca alterações na consciência, afeta a atenção, concentração, motivação e memória, sem contar os danos à saúde física. Quem já observou a condição lamentável de um usuário de drogas sabe perfeitamente que seu estado em nada pode ser comparado a uma diversão. Sempre que perde o domínio sobre si mesmo, se torna incapaz de pensar, concentrar-se – e a droga é uma das formas de isso acontecer – o homem se afasta daquilo que mais o dignifica e aproxima-se dos aspectos mais obscuros e menos nobres de sua natureza. Quando um Estado facilita ou mesmo estimula um hábito pernicioso, trabalha no sentido contrário ao do bem comum, que deveria ser a sua finalidade.
Outra hipótese é de que as 10 gramas semanais não sejam suficientes. Cientificamente já foi comprovado que o uso de maconha de forma contínua pode levar o usuário a precisar de doses cada vez maiores para obter os mesmos efeitos. Neste caso, o tráfico continuará a atuar – diminuir a ação do tráfico de drogas é uma das justificativas do projeto uruguaio –, bem como surgirão formas de se “burlar” a legislação, como o repasse da droga de um usuário a outro, cadastramento de pessoas que mesmo não consumindo comprem a droga para repassá-la a terceiros, levando ao surgimento de uma rede de corrupção nem um pouco construtiva.
Pode-se argumentar que a legislação uruguaia regulamenta o uso da maconha para diminuir os riscos sociais de uma prática recorrente e que não se extinguirá. Como o Estado não consegue evitar que as pessoas usem a droga, seria melhor criar regras para o seu consumo. Tal ideia tem analogia com as chamadas políticas de redução de danos, onde não se tenta mais demover a pessoa de fazer algo que atente contra si mesma, mas se oferece subsídios para que o faça de maneira mais “segura”. Por mais que seja importante respeitar a liberdade de cada pessoa, não se pode fechar os olhos quando ela se encaminha para o abismo. É dever de cada um e do Estado oferecer auxílio para as pessoas possam sair da situação degradante em que se encontrem. No caso da maconha, se a preocupação maior for a segurança dos usuários, por que não investir em programas de orientação e desintoxicação de dependentes em vez de regulamentar os locais de venda e a quantidade de droga que pode ser comprada? E por mais que se diga que o foco da lei uruguaia seja os que já fazem uso da droga, é inevitável que pessoas que nunca usaram maconha por causa das restrições legais e da dificuldade de acesso agora a experimentem e venham a se tornar usuários contínuos.
Quanto aos supostos “ganhos” sociais e econômicos advindos da normatização da produção e venda da maconha, como diria o filósofo Michael J. Sandel, há coisas que o dinheiro não pode comprar. Mesmo que estivesse em jogo a saúde e a dignidade de uma única pessoa, não valeria a pena.