Ilustração de Theo Szczepanski
por Rogério Pereira
À meia-noite, o senhor me visitará. Deixarei a janela aberta para facilitar a sua vida. Sei que não é nada fácil percorrer o mundo balançando aos solavancos no velho trenó puxado por renas incansáveis. Aqui não há chaminé para o senhor deslizar o corpanzil. Mas é simples me encontrar. Agora, moro no quarto 1201, do Hotel Paraíso. O nome é uma ironia. Posso garantir. Fica bem no centro de Curitiba. Todo mundo conhece. Não se espante com a vizinhança. Os travestis e as prostitutas são muito barulhentos — uma revoada irrequieta de sanhaços fantasiados. Gritam e brigam a noite toda. Mas não fazem mal a ninguém, a não ser a si mesmos. Sim, acredito em Papai Noel. Tenho certeza de que o senhor existe. Sou um menino de 40 anos. Quando era um menino entre 7 e 10 anos, não acreditava muito. Eu pedia bicicleta, bola de couro, ferrorama, carrinho de controle remoto, barquinhos com motor de verdade. Mas nunca dava certo. No Natal, sempre ganhava uma bola de plástico dos mais ordinários e algumas balas duras que tingiam a língua e o céu da boca. E nem sei dizer de que cor ficava minha boca. Nasci daltônico. Não peguei a doença de nenhum travesti ou prostituta. Daltonismo não passa só de olhar a bunda e os peitos caídos das putas da minha infância. Algumas ainda estão por aqui. A bola de plástico não durava até o ano-novo. Estourava nos pedregulhos do terreiro. Às vezes, um gramado faz falta na vida da gente. A nossa casa não tinha uma chaminé bacana. Mas não custava ao senhor fazer um esforço e descer pelo estreito cano do fogão a lenha.
Na semana passada, descobri que sou muito popular. Tirei uma nova carteira de identidade. Estava cansado de encarar um menino assustado de 14 anos. Agora, encaro um menino assustado de 40 anos. A foto não está muito boa. Fiquei com cara de louco. Talvez seja o meu melhor retrato. Por curiosidade, perguntei quantos Rogério Pereira existem no Paraná. Somos um exército, um batalhão de estropiados voltando da Guerra do Paraguai. Há quase quatrocentos Rogério Pereira. Imagine em todo o Brasil! Sem contar Portugal, Cabo Verde, Angola, Moçambique e Macau aonde os Pereira andaram fornicando com fúria e devassidão. Mas não se preocupe: é fácil me encontrar em meio a tantos Rogério Pereira. Sou magro, daltônico, assustado e moro no quarto 1201, do Hotel Paraíso. Não tem erro.
O problema é que não sei o que desejo ganhar neste Natal. Talvez não fique bem a um menino de 40 anos pedir bicicleta, bola de couro, ferrorama, carrinho de controle remoto, barquinhos com motor. Na verdade, Papai Noel, não preciso de bens materiais. Acho que tenho tudo para viver até o fim dos meus dias. Seria pedir demais um carro blindado (os travestis podem se revoltar contra as prostitutas num ferrenho tiroteio na madrugada) ou um helicóptero (o trânsito de Curitiba está pior a cada dia)? Nada disso me faz falta. Pelo menos agora, não. Quem sabe algumas miniaturas para minha coleção de carros antigos. Sei que é ridículo um menino de 40 anos com mania de coleções. Ainda mais de miniaturas. Sou uma vergonha.
É difícil decidir por um presente neste mundo com tantas possibilidades. Mas as tranqueiras materiais não são imprescindíveis agora que ocupo o 1201. Por ironia há cupins no quarto. Pela manhã, o pó da comilança dos intrometidos insetos polvilha o balcão ao pé da janela. A casa da mãe também está infestada de cupins. Se tivesse câncer e ocupasse uma cama à beira da morte, eu seria ainda mais parecido com ela. Às vezes, o azar não é para todos.
Penso em coisas abstratas. Mas acho que o senhor não pode me ajudar. Os duendes são muito bons em trabalhos manuais, em construir carrinhos, bonecas, bolas, trens, barcos, etc. Preciso de algo que não sei muito bem o que é. Algo que não consigo tocar, algo cujo nome me escapa neste momento.
Um amigo deixou uma cartinha na árvore do Papai Noel do shopping. Ele é muito tímido. Eu também. Mas ele — além de tímido — não gosta de escrever. A comunicação é algo sempre complicado. Sabe o que pediu pro senhor? “Boneca inflável com tecnologia japonesa para favores sexuais”. É uma brincadeira. Mas acho que há alguma verdade nesta frase. Ele, o meu amigo, considera sexo um favor. Talvez tenha razão. Sexo é, às vezes, um favor que fazemos a outra pessoa ou a nós mesmos. Às vezes, é bom; às vezes, não passa de um favor. Não gosto de brincar com coisa séria. Natal e Papai Noel são importantes. Sempre escrevo cartas para o senhor. Nunca recebi resposta. Entendo, claro. A sua vida é muito corrida e agitada. Mas talvez a culpa seja minha. Escrevo muito próximo ao Natal. A Andrea — minha amiga que era gorda e agora é magra — me disse que o senhor nunca vai atender aos meus pedidos. Eu precisaria lhe enviar a carta até outubro. Mas nunca lembro. Vivo às voltas com problemas. Agora é o quarto 1201. Vamos combinar: se não for possível me atender neste Natal, considere esta carta válida para 2013. Acho que não vou mudar muito até lá.
Realmente, não sei o que pedir. De que preciso, o senhor e os duendes não saberão construir. Então, para não ficar sem presente neste Natal, traga-me uma bola de plástico dos mais ordinários. Agora que o terreiro ganhou asfalto, convidarei os travestis e as prostitutas para uma pelada. Nada de trocadilhos, por favor. Será lá embaixo, sob a janela do 1201. Sem pedregulhos no campo, talvez a bola sobreviva até o ano-novo. Sobreviver é sempre um desafio.
*Publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com)