12:25Uma radiografia da gestão de Ednaldo Rodrigues na CBF

por Allan de Abreu, na revista piauí

A Seleção Brasileira de Futebol caiu nas quartas de final na Copa do Mundo do Catar, em 2022, frustrando milhões de torcedores, mas um grupo de 49 brasileiros fez a festa. Usufruíram de mordomias durante as três semanas em que o Brasil esteve vivo na competição, com direito a hotel cinco estrelas e ingresso para assistir às partidas. Muitos tiveram atendimento vip na chegada ao Aeroporto Internacional de Doha, alguns voaram de primeira classe e pelo menos um ganhou cartão corporativo para gastar livremente até 500 dólares por dia (2,5 mil reais). Tudo à custa da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a mais alta entidade do futebol nacional, embora nenhum dos 49 tivesse relação direta com a confederação ou as federações estaduais.

O presidente da CBF, o baiano Ednaldo Rodrigues, também espetou na conta da confederação as despesas de sua família – a mulher, a filha, a cunhada, o genro e os dois netos. Todos voaram em primeira classe, usaram o atendimento vip no aeroporto de Doha, hospedaram-­se no Marriot Marquis City e só as despesas extras da mulher do presidente da CBF na hospedagem bateram em 37 mil reais. Não chega a ser uma exorbitância, sobretudo para uma entidade que fatura 1 bilhão de reais por ano, mas é o suficiente para macular a gestão de quem, meses antes, assumira prometendo “expurgar toda e qualquer imoralidade”.

Além da própria família, Rodrigues se lembrou dos amigos – amigos da política, do Judiciário, da imprensa, das artes. A CBF pagou hospedagem, voo – desta vez, de classe executiva – e ingressos para três partidas ao deputado federal José Alves Rocha (União Brasil-BA), que viajou com a mulher Noelma. O gasto total da CBF com o casal Rocha chegou a 364 mil reais. Para o senador Ciro Nogueira (PP-­PI), que foi acompanhado da namorada Flávia Rosalen, a entidade ofereceu um pacote mais modesto, que saiu por 195 mil. Os dois – o deputado e o senador – integram a “bancada da bola” no Congresso. O senador Jaques Wagner (PT-BA) também foi convidado, mas ficou retido no Brasil em meio às negociações da transição de governo. Em seu lugar, foi o filho Mateus, de 47 anos.

Entre os 49 felizardos, estavam também o cantor Gilberto Gil e sua mulher Flora, a socialite Lilibeth Monteiro de Carvalho, o desembargador Julio Cezar Lemos Travessa, do Tribunal de Justiça da Bahia, o empresário pernambucano Diogo Monteiro Lima, o estilista Ricardo Almeida (que desenhou os ternos dos jogadores da Seleção para a Copa), o ex-­cinegrafista da TV Globo, José Carlos Cruz da Silva, o Mosca (a quem a CBF deu aquele cartão corporativo de 500 dólares diários) e outros três jornalistas da Bahia, todos amigos de Rodrigues. A conta total não inclui os presidentes das 27 federações estaduais, mas fecha em 49 contando com suas mulheres e filhos. A maioria ficou no City Centre Rotana, outro cinco estrelas de Doha.

Ninguém na imprensa, ou fora dela, deu muita atenção à farra dos 49. Afinal, não foi a primeira vez que a CBF bancou convidados sem conexão com o futebol em suas turnês no exterior. Na Copa de 1998, na França, por exemplo, o então capo da confederação, Ricardo Teixeira, levou cinco desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em cuja pauta havia matérias de interesse da entidade. Mas, desta vez, até funcionários da CBF com várias copas no currículo acharam que a farra foi longe demais. Estima-­se que tenha custado uns 3 milhões de reais aos cofres da confederação.

“Quem deveria fiscalizar essa farra, pelo estatuto da entidade, são as federações estaduais”, diz um dos oito vice-­presidentes da confederação, que pediu para não ser identificado. “O problema é que essas federações reproduzem o mesmíssimo comportamento. É um sistema viciado.” O vice-presidente apoiou Rodrigues na eleição de 2022, mas se diz um crítico da malversação dos recursos da entidade na atual gestão. “Ednaldo não é o primeiro presidente da CBF a desviar recurso da entidade para fins pessoais. Mas ele com certeza elevou essa prática a um nível preocupante”, diz.

E começou cedo. Embora ganhe cerca de 1 milhão de reais por mês – somando-se o salário na CBF com as comissões da Confederação Sul-Americana de Futebol e da Fifa –, Rodrigues morou por nove meses no hotel Grand Hyatt, na Barra da Tijuca, quando assumiu a entidade na condição de interino, em agosto de 2021. Depois, quando virou titular, mudou-se para um condomínio no mesmo bairro, mas passava temporadas com a família no hotel, com despesas sempre pagas pela CBF. Entre fevereiro e maio de 2023, por exemplo, a entidade bancou 422 mil reais com diárias para Rodrigues, a filha Rafaela e a cunhada Taíse.

Em sua gestão, a CBF costuma pagar os voos entre Rio de Janeiro e Salvador para sua família e agregados. Entre os passageiros, estão a mulher, a filha, o neto, o genro, a sogra, os cunhados, o sobrinho e até o cabeleireiro da família, Jorge Luiz Castro Gonçalves. De novo, não são despesas capazes de esvaziar os cofres de uma entidade bilionária, mas servem para ilustrar o que o vice-presidente chama de “nível preocupante”.

Os cartolas das federações estaduais, em vez de fiscalizar, também aproveitam a generosidade de Rodrigues. Até 2021, ca­da presidente de federação ganhava 50 mil reais por mês. Quando assumiu a CBF, Rodrigues deu belos reajustes nos contracheques da cartolagem, tanto que, hoje, um presidente de federação ganha 215 mil reais, com direito a décimo sexto salário.

Além de rechear o contracheque da cartolagem, Rodrigues distribui agrados. Entre os dias 21 e 29 de outubro de 2022, a CBF pagou 23,3 mil reais pela hospedagem de Roberto Góes, presidente da Federação Amapaense de Futebol e também vice-presidente da CBF, e de sua mulher, a advogada Gláucia Costa Oliveira. O casal ficou no Radisson Paulista, um hotel na região dos Jardins, em São Paulo. (Roberto Góes é ex-prefeito de Macapá e ficou preso por dois meses em 2010, acusado de desvio de verbas. Seis anos depois, foi condenado a 2 anos e 8 meses de prisão, pena convertida em prestação de serviços a entidade filantrópica. Quando a CBF bancou sua estada no hotel com a mulher, ele havia acabado de ser eleito deputado estadual pelo União Brasil.)

Um ano e meio depois, em março do ano passado, a Federação Amapaense de Futebol pediu que a CBF pagasse passagens aéreas para Góes, a mulher, a irmã, a filha de 4 anos e a babá, no trecho Macapá-São Paulo, bem como dois quartos duplos no InterContinental, um cinco estrelas nos Jardins. O motivo da viagem familiar não tinha relação com o futebol: a mulher de Góes passaria por cirurgia em um hospital em São Paulo. No pós-cirúrgico, o médico quis que a paciente ficasse na cidade por mais uma semana. Góes pediu a Rodrigues que esticasse a estadia em São Paulo e remarcasse as passagens de volta, tudo à custa da CBF.

Em mensagem de áudio via Whats­App, à qual a piauí teve acesso, Góes pede o favor: “Fala, amigo Ednaldo, tudo bem? Aqui é Roberto. Amigo, eu tô em São Paulo, a Gláucia passou por um novo procedimento… uma cirurgia, e o médico pediu pra gente ficar mais uma semana. Eu vou precisar que você me ajude aí a prorrogar a estadia do hotel e as passagens [de volta], remarcar. Grande abraço! No aguardo.” Rodrigues autorizou o gasto extra. A CBF arcou com, no mínimo, 114 mil reais.

Os exemplos do uso pessoal do dinheiro da entidade são vários. Em abril do ano passado, a CBF realizou uma assembleia geral no Rio de Janeiro, e o presidente da Federação de Futebol do Espírito Santo, Gustavo Vieira, aproveitou para levar a família para um passeio. A CBF bancou os bilhetes aéreos e hospedagem para sua mulher Priscila e seu filho de 10 anos. São pequenos favores que formam uma teia de apoio. Tanto o presidente da federação do Amapá quanto do Espírito Santo votaram em Rodrigues na eleição para presidente da CBF em 2022 e são seus fiéis aliados.

Enquanto isso, falta dinheiro para qualificar os juízes. Quando assumiu a comissão de arbitragem da CBF, em abril de 2022, Wilson Luiz Seneme apresentou o projeto de um centro de treinamento exclusivo para árbitros, nos moldes do que havia na sede da Conmebol, em Assunção, com refeitório, alojamento e campos de futebol, cercados por câmeras de vídeo para a simulação de lances. Seneme também sugeriu a criação de uma escola de arbitragem, para uniformizar a formação técnica dos juízes, cujo aprendizado se dá em cada federação, muitas vezes com metodologias distintas.

Rodrigues aprovou os dois projetos, com custo estimado em quase 60 milhões de reais, em valores de hoje. Enquanto cuidava da construção do centro de treinamento e da escola de arbitragem, Seneme determinou que todos os árbitros da Série A do Campeonato Brasileiro fizessem quinzenalmente um treinamento e avaliação física em um clube privado do Rio de Janeiro. Em agosto do ano passado, alegando restrições orçamentárias, Rodrigues suspendeu todas as viagens aéreas e hospedagens na CBF.

O treinamento dos árbitros então passou a ocorrer apenas por videoconferência. “É como se um clube contratasse um técnico europeu que ficasse treinando os jogadores lá da Europa. Não tem cabimento”, critica um árbitro, ouvido sob anonimato para evitar represálias. O resultado foi catastrófico. No campeonato do ano passado, 110 árbitros foram afastados por falhas técnicas. No ano anterior, foram quarenta. Seneme, que não quis dar entrevista, foi demitido em fevereiro. O centro de treinamento e a escola de arbitragem não saíram do papel.

Ednaldo Rodrigues Gomes, de 71 anos, é a maior autoridade do futebol brasileiro há quase quatro anos. Na década de 1970, ele arriscou uma carreira como lateral esquerdo em Vitória da Conquista, sua terra natal, mas não demorou a trocar os gramados pela cartolagem. Primeiro, entrou na Liga Conquistense de Desportos Terrestres. Depois, ascendeu para a Federação Bahiana de Futebol. Enfim, chegou ao comando da CBF cuja missão é “dirigir e controlar o futebol no território brasileiro”.

“Para uma pessoa negra como eu, de origem humilde, é uma honra ocupar esse espaço”, disse ele à piauí, pouco antes do Carnaval, na ampla sala que ocupa no terceiro andar da sede da CBF, na Barra da Tijuca. Rodrigues tem estatura mediana, está ligeiramente acima do peso e nunca mira o interlocutor nos olhos. Nas últimas semanas de fevereiro, andava aflito com a eleição que se avizinhava. Queria manter-se no comando da CBF por mais um mandato de quatro anos. Tudo o que vinha à tona naqueles dias pré-eleitorais era visto como perseguição da oposição. “Eu assumi para mudar a reputação da instituição, e isso gera ressentimentos do outro lado”, disse.

Segundo Rodrigues, o trem da alegria da última Copa do Mundo é uma dessas perseguições. “É praxe que entidades esportivas façam convites a pessoas relevantes e personalidades para acompanhar grandes eventos”, disse. Sobre os agrados aos cartolas estaduais, afirmou que “as despesas dos familiares dessas pessoas [presidentes de federações] são por elas pessoalmente bancadas”, em que pesem até evidências sonoras, como o áudio do WhatsApp, mostrando o contrário. Sobre suas despesas pessoais pagas pela CBF, garantiu que reembolsou tudo aos cofres da confederação. A piauí pediu comprovantes dos reembolsos. Até o fechamento desta edição, Rodrigues não havia fornecido nenhum documento.

Sua passagem pela CBF tem sido uma sucessão de tumultos. Em 2021, depois da saída do presidente da confederação – Rogério Caboclo, afastado por assediar moral e sexualmente uma funcionária –, Rodrigues foi um dos interinos a assumir o cargo. Ficou até março do ano seguinte, quando se elegeu presidente. Em dezembro de 2023, ele próprio foi afastado por irregularidades no processo eleitoral. Em janeiro de 2024, voltou ao posto por decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal.

O jornalista Juca Kfouri, que acompanha os rolos da CBF há mais de cinco décadas, avalia que Rodrigues opera para obter o respaldo de que desfrutaram seus antecessores. “Antes, o poder estava consolidado nas mãos de Ricardo Teixeira e de Marco Polo Del Nero”, diz, referindo-se a dois dos mais notórios ex-presidentes da confederação, ambos banidos do futebol por corrupção. Rodrigues está chegando lá, embora nos bastidores da CBF haja uma constante disputa de poder – por cartolas, por políticos e até por membros do Judiciário.

E como.

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