por José Maria Correia
“A memória é o paraíso do homem”.
Com o perdão do cronista e mestre Rubem Braga que abominava os textos dos memorialistas, como escrever sobre nossa Curitiba, sem a evocação da memória.
Afinal são mais de sete décadas de andanças e perdições, percorrendo caminhos e descaminhos como nos versos de Antonio Machado :-“Caminante non hay camino, camino se hace al andar.”
Andei demais e ainda continua esse caminhar.
As esquinas antigas que me viram jogando as pequenas bolas de vidro e correndo inutilmente atrás dos balões nas festas juninas, são as mesmas que escondem solidárias até hoje os ecos de minhas ingênuas paixões adolescentes.
Essa, a minha velha Curitiba, confidente única, a parceira do silêncio que comigo dividiu os roteiros juvenis e secretos de sentimentos ardentes e poesias de pobres rimas declamadas por inocência e ausência de crítica e malícia.
Com que saudades Curitiba, vejo ainda nas fotografias do imaginário, os lambaris translúcidos povoando todos os rios da minha infância, águas cristalinas terminando em pequenas quedas e cascatas.
Acreditem, assim era o bairro do Batel.
E os domingos de futebol, campos verdes e multidões em tardes douradas de encantamento sob as sombras dos pinheiros, onde o silêncio da pequena cidade permitia ouvir o canto e a comemoração das torcidas cada vez que a bola beijava a rede.
Como esquecer então as doces manhãs de guarda-pós brancos, brilhando alvos como marfim nos pátios de saibro das escolas,19 de dezembro, Julia Wanderley e Belmiro Cesar onde aprendemos o lema,- ‘firme, forte, franco e fiel.”
Quanta devoção pelas primeiras professoras, musas inatingíveis como deusas e primeiros amores a criar sonhos e fantasias infantis irrealizadas.
E que tempos magníficos, vieram depois os do Colégio Estadual com as jaquetas azuis e as quadras dos esportes olímpicos, da enorme piscina com trampolim onde o colega Mario Correa exibia seus arriscados saltos acrobáticos
Do teatro de vanguarda, da música do nascente Sam Jazz Quintet e da literatura do amigo Jaques Brandt, tudo tão diferente de hoje, da linguagem virtual minimalista e da solidão do ensino à distância.
Foi no Estadual, na antiga biblioteca, com a cumplicidade das bibliotecárias, dos mestres e eruditos que expandi a mente, devorei a trilogia “Os Subterrâneos da Liberdade” e toda a coleção de Jorge Amado, autor proscrito e no índex da ditadura militar que nos sufocava e restringia , mas não nos submetia.
Que clássico “Capitães da Areia”, o livro-denúncia que inspirou tantas gerações .
E havia os roteiros underground: o voyeurismo de espiar as lindas modelos posando nuas no subsolo da Biblioteca Pública, os olhos grudados nos vitrôs semiabertos embaixo da rampa e as mãos nervosas nos bolsos das calças .
Levar as namoradas de surpresa na terrível morgue no porão da Universidade, e tirar proveito da imobilidade causada pelo terror da visão da morte mumificada em formol nos corpos de pobres desconhecidos, para minutos de roubado erotismo.
Invadir à noite os porões e os labirintos onde aconteciam os rituais de iniciação das lojas maçônicas, a da Luz Invisível na Praça Osório onde o avô tinha sido venerável com Dario Velozo e tentar decifrar as inscrições, os símbolos proibidos e os desenhos de esqueletos e crânios alusivos ao decapitado João Batista.
E finalmente a prova suprema de coragem entre os adolescentes, pular o muro do Cemitério Municipal à meia noite e atravessar sozinho de ponta a ponta, passo lento e sem pressa, entre as ruelas dos túmulos e capelas ornados com as assustadoras cruzes de bronze e sombrios anjos de pálido mármore iluminados por esquecidas velas e círios até finalmente ajoelhar ao pé da tétrica Cruz das Almas e trazer como prova a cera derretida das velas do dia de finados.
Essas proezas conferiam status, só não me perguntem quem criava tais desafios que depois foram sucedidos por outros mais divertidos e desafiadores como atravessar de carro ou de moto a Galeria Tijucas fugindo da poderosa Harley Davidson do implacável guarda Guerra, do Detran .
Depois, deixado o Estadual e já acadêmico na Faculdade de Direito na Federal, vieram outros enfrentamentos bem mais sérios , riscos maiores e nem sempre considerados.
Em 1968, o ano da rebeldia surgida em Paris e depois em todo o mundo .
Aqui liderados pelos veteranos Vitorio ,Stenio, Gerson e o Mario Oba, fizemos a tomada da sede da Reitoria na luta pelo ensino público e gratuito.
Foram muitos os confrontos com a repressão nas passeatas que tomavam toda a Rua Quinze, mas resistíamos nas barricadas que erguíamos com os paralelepípedos que arrancávamos apenas com as mãos, como na histórica Comuna de Paris .
Comícios relâmpagos proibidos , panfletagens, jornais clandestinos e mensagens de protestos pela cidade pedindo o retorno do estado de direito, das reuniões, de nossos centros estudantis e a plenitude das liberdades públicas.
Tudo que significava contestação ao arbítrio era censurado e proibido.
Livros, filmes, teatro, eventos, músicas e jornais.
Lembro do arbitrário coronel que chefiava a Polícia Federal percorrendo as livrarias e mandando recolher e queimar livros de uma imensa lista feita em Brasília por ignorantes que jamais os leram nem entenderam o sentido das obras clássicas .
Só Deus sabe o que passou o veterano Dude Guignhone, o generoso livreiro-mor, para salvar as obras clássicas da sanha dos beleguins .
Quem era preso, apenas por se posicionar para o retorno das eleições e contra a brutalidade do regime, ficava recolhido uma longa temporada nos presídios. Quem escapava , resistia por conta própria e risco até escolher entre o exílio ou a clandestinidade.
Essa foi a geração das moças e rapazes do festival de Woodstock, dos cabelos longos , do amor não tão livre como diziam, e da consciência dos manifestos de coragem , da utopia por uma sociedade mais justa, dos mimeógrafos, da tinta spray e das canções contra os tanques e os blindados, as bombas e as torturas nos calabouços.
“Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não
Nas escolas , nas ruas , campos , construções “( Vandré)
Contra os fuzis, os cassetetes e os mosquetões, tínhamos apenas os estilingues e as pedras como fazem hoje as crianças e os adolescentes vitimados no genocídio na Faixa de Gaza, na Palestina.
Quando eu poderia imaginar que hoje com um simples celular se divulgariam livremente milhões de mensagens de protestos e denúncias , enquanto em nosso tempo o arbítrio criminalizava com violência apreensões de umas dezenas de panfletos em nossas mãos por pedir liberdade de expressão.
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REMANESÇO UM PEREGRINO
Mas é olhando para esse tempo que não morre nunca que remanesço ainda um peregrino de todos os meus lugares santos.
Sou romeiro do antigo Bar do amigo Pasquale, cantado em prosa e verso pelos escritores Dante Mendonça e Carneiro Neto, pares na Academia Paranaense de Letras.
Por décadas o Passeio Público foi a nossa praia curitibana, onde no rio de concreto deslizavam canoas e pedalinhos circunavegando a Ilha da Ilusão do escritor Emiliano Perneta , ali coroado o Príncipe dos Poetas.
Socorrido sempre fui nas emergências noturnas da fome pelos sanduiches de pernil do bar Triângulo – e comensal de jantares em neblinas invernais no velho restaurante Palácio da rua Barão do Rio Branco, onde mulheres desacompanhadas inexplicavelmente não eram admitidas; ordens da casa, diziam os cordatos garçons Mozart e Adriano.
E é na memória emotiva já fragilizada que ainda procuro todos esses lugares
Procuro eterna e inútilmente a minha taça de morango com nata, objeto de desejo, encantada e perdida para sempre em alguma mesa de almoço de domingo com meu pai no restaurante Bar Paraná da rua Quinze de Novembro…
Procuro na dor da perda, o pai, com um grito que não cala em meu coração e ecoa esses anos todos, cada vez mais sofrido, mas também cada vez mais próximo de silenciar na eternidade .
Procuro na orfandade adulta o abraço delicado da mãe e que nunca mais sentirei.
Procuro inutilmente, mesmo em lembranças, minha juventude e a mim mesmo.
Tenho nostalgia do que fui, do que vivi.
Nem sei se estive mesmo em uma noite de delírios de meu corpo jovem na imagem caleidoscópica multifacetada em cor neon- luxúria, criada pela célebre Maria Japonesa na magia da cama giratória , como uma imensa roleta, a do quarto dos espelhos da boate 4 Bicos, o enorme chalé no formato suíço na Vila Oficinas, para onde muitas belas mulheres foram atraídas por convincentes cafetões e gigolôs .
A pobre Maria foi arruinada por um desses rufiões,e de rainha da noite curitibana acabou já como idosa dependendo de favores das antigas garotas que agenciava para poder sobreviver.
Coisas da noite sempre implacável em seus mistérios onde brilhavam as cigarras em volta das luzes de neon.
E no centro da cidade estava a imensa boate Stardust, iluminando a noite da Praça Osório e o repuxo das sereias que pareciam dançar ao som dos boleros de Armando Manzanero .
As lembranças voam, mas sempre retornam .
A PAIXÃO RUBRO-NEGRA -A NOITE E O CINEMA
No antigo estádio Joaquim Américo, levado pelo pai, jogador campeão da década de 30, me sentava junto do campo e nas arquibancadas de madeira onde se sentia o cheiro inebriante do éter dos vestiários e da fumaça dos bifes dos churrasquinhos das barraquinhas logo acima.
A memória tem odores sabores e sons .
Fechando os olhos, ainda agora escuto os gritos a cada gol do furacão rubro-negro, o verdadeiro e legítimo, o dos gênios Jackson e do Cireno, assim como escuto em meus sonhos de olhos abertos as batidas de pés no assoalho do Cine Curitiba cada vez que arrebentava a já gasta fita do antigo seriado do maléfico vilão Fu-Man-Chu ou do paladino herói Sombra (pam /pam/pam/pam/).
Cada vez que vou ao aeroporto ainda ouço ao longe os metais da orquestra do maestro Genésio do dancing Águas Belas, perto do primeiro motel 007 do pioneiro Cobrinha, e as sirenes assustadoras das viaturas em mais uma das intermináveis batidas policiais da Ronda do Delegado Paulo Lagos, e intuitivamente olho em volto em busca da proteção do armário em que, menor de idade me escondia.
E no porão do prédio da antiga sede do Clube Curitibano, no centro da cidade, ainda paro para trazer da memória o eco do querido cantor Natinho em dueto com a paraguaia Perla, na animada boate dancing Presidente, do gigante night-man, o saudoso Coelho, “Galopeiraaaaa, eu também entrei a bailar…”
No fim da madrugada,e já raiando o dia e lá perto do Clube Operário, na boate Caverna da Bruxa eu ia encontrar o craque e ídolo do Atlético , o Zé Roberto, o Gazela de Ouro, tomando a penúltima dose de Campari e descrevendo para as meninas os gols que faria algumas horas depoi ,sempre fugido da concentração e do velho técnico- o grande Tim, quando já jogava pelo rival Coritiba.
OSVALDINHO UM ÍCONE GAY
Dos carnavais lembro bem que em um grandioso baile, do Clube Operário, suprema glória da viadagem curitibana, o decano dos gays, o delicado e culto Osvaldinho, abandonou por uns dias o banco onde reinava na Praça Osório, seu ponto para seduzir e namorar os soldados vindo do interior, para ir desfilar no internacional Gala Gay.
Foi fantasiado de Candelabro Italiano, um traje esplendoroso desenhado pelo figurinista Clovis Bornay e inspirado no filme sucesso da época com a música hit-parade Aldila e estrelado pela bela dupla Suzane Pleshett e Troy Donahue.
Não deu muito certo. Nesse famoso desfile, o Osvaldinho com um corpo de toureiro espanhol, entrou em cena muito bem maquiado,com candelabros e enormes velas acesas em cada braço e plumas, muitas delas de pavão, por todo o corpo.
O público vibrou com a coreografia, só interrompida pelo inesperado incêndio causado pelas chamas sobre os adereços, o que forçou o bravo artista a ser retirado nos braços atléticos de um dos bombeiros de plantão, para delírio do público e da viadagem (ou veadagem) , como se dizia na época e sem ofensa.
A verdade por mim apurada é que nosso representante foi vítima de sabotagem de um jovem travesti argentino que desfilava seminu e agiu por inveja da bela fantasia de Candelabros que havia sido financiada por damas da sociedade que eram amigas do Osvaldinho, mordomo de uma das mais tradicionais famílias curitibanas.
GOGÓ DA EMA
Já em outra Rua, a tradicional Comendador Araújo, quase ao lado da Igreja Presbiteriana, estouravam todas as noites nas panelas as pipocas do maitre Orlando na boate Gogó da Ema, metade milho, metade sal para aguçar a sede dos clientes, circunspectos doutores em seus ternos escuros e gravatas de seda das coleções da elegante Casa Coelho .
A boate faturava alto nos drinques fajutos de frutas chamados de clericô , Campari ou Saint Remy exigidos por ordem da casa e consumidos pelas meninas de programa, docemente apelidadas de bailarinas, embora só bailassem mesmo na cama das espeluncas onde eram levadas pelos fregueses.
Para os cavalheiros, uísque batizado- produzido cuidadosamente pela boa destilaria clandestina do querido Vovô Rovedo , saudoso parnanguara, bebida que em muitos aspectos superava algumas marcas populares conhecidas no Brasil .
Para os clientes mais considerados era servido o legítimo escocês providenciado pelo contrabandista Mandico, da loja da Avenida Vicente Machado.
HOTEL COLONIAL, A SEDE DA BOÊMIA CULT
Quando a boate fechava, iam todas as moças em séquito matar a fome com uma canja da madrugada na cafeteria clássica do vizinho Hotel Colonial, sempre servida com gentileza pelo garçom Antonio Colaço.
Ali ouviam por horas e até o nascer do sol as histórias cheias de ironias, sabedoria, metáforas e advertências aos boêmios, plateia cativa do sábio velhote Ernesto Perly.
O Colonial era uma espécie de exílio da boêmia onde se reuniam jornalistas, artistas, músicos ,advogados, delegados , políticos, juízes, promotores , escritores, pequenos traficantes, garçons e toda a fauna noturna que tem seus códigos, valores e redutos.
O amplo salão tinha suas turmas e no centro a mesa redonda cativa que o decano Perly dividia com o talentoso escritor Jamil Snege, comigo , o elegante vereador Emilio Mauro e o publicitário e galã Almir Feijó, Paulo Leminsky , Aramis Millarch e tantos amigos , todos estes já no andar de cima. Só eu que insisto em permanecer aqui.
Circulando pelas mesas ficava o terrível rufião apelidado de Açucareiro por sempre estar em pé com os braços em forma de xícaras ao redor das mesas.
O genial repórter policial Ali Chaim, codinome Califa 33, chamava as garotas da noite de bonecas de pano, já que ao final da madrugada surgiam, trágicas, cansadas e entristecidas como a pintura da pobre Sien, musa e modelo de Van Gogh e como ele suicida .
O fato é que por onde andei tratei de marcar como sacras todas essas referências antiga.
E AS PORTAS SE CERRARAM COMO EM UM TANGO ARGENTINO
As dos botequins e armazéns nossos vizinhos dos bons polacos Estacho e Popadyuk que nunca mais serão abertos e que tinham em suas prateleiras vidros coloridos e opacos com os mais preciosos tesouros de minha infância, balas de ovos, balas de banana de Antonina, as figuras de coleção das balas do Zequinha, copos de capilé, biscoitos Lucinda e Maria Mole e muitas folhas de papel de seda para as nossas pipas que em curitibanês se chamam raias.
Só esta Curitiba que tanto vimos ser aproveitada nos programas eleitorais jamais pude deixar de amar, e sendo única, foi minha companheira de desabafos etílicos em madrugadas brancas de névoa, paixão e neblina entre rubros vômitos de Cuba-Libre, Gin e Hi-Fi, drinks de adolescentes que nunca souberam beber.
Nas esquinas ficaram também as serenatas e os buquês de rosas que se revelaram inúteis , o bumbo silenciado do Fernandinho Louco , o som nas radiolinhas de pilha do Rock Around The Clock, Elvis Presley, twist, Chubby Checkeer, Beatles e Rolling Stones.
Só encontro agora nos museus de carros antigos o ronco dos escapes abertos dos DKWS e dos Gordinis em que o poeta Celso Portugal, o amigo Guido Cecato e meu irmão Murillo faziam seus rachas da madrugada para aflição dos pais que sempre arcavam com os prejuízos das rodas tortas e dos paralamas amassados
E uma a uma as lembranças foram substituindo as ilusões dos amores que seriam eternos ,mas não foram, das conquistas definitivas e dos amigos que durariam para sempre, mas já se foram sem despedida e muito antes do combinado.
Os rios e os riacho foram sucumbindo e as estrelas encobertas pelas luzes artificiais desistiram de pedir socorro, mas ainda estão lá nas mesmas madrugadas velando os doces cantos de amor dos sabiás laranjeiras que embalam minhas noites de insônia
AINDA OS CINEMAS
E os cinemas, ah os cinemas, esses são os insubstituíveis!
Na Praça Zacarias e em frente da minha grande academia de artes marciais, a Budokan , escola de judô , filosofia e Karatê por gerações , havia o velho cine Luz com os enormes cartazes de Sansão e Dalila pintados à mão pelo artista, o gigante investigador de polícia e meu amigo apelidado de Maciste.
Nunca mais conseguiram desenhar Elizabeth Taylor ou Ava Gardner com a expressão que o Maciste dava aos seus retratados .
Já na Cinelândia rua 15, ao lado da confeitaria e bar Guairacá, o mais frequentado era o Avenida com as superproduções e épicos entre eles, Os Dez Mandamentos que tanto me impressionou com o Charlton Heston,o Moisés bíblico com seus braços estendidos segurando as tábuas sagradas. Charlton ainda foi Ben-Hur , El Cid e Michelangelo, sempre conferindo grandiosidade aos seus personagens.
Para as crianças e adolescentes as matinadas do cinema Ópera com os desenhos depois da missa e a as matinês do cine Palácio com as comédias água com açúcar de Doris Day e Rock Hudson, estranhamente adorados pelo exigente Paulo Francis, embora filmes de qualidade primária e sem nenhum conteúdo.
Nas bombonieres se buscava um drops Dulcora, “a delícia que o paladar adora”, balas de chocolate e azedinhas, e life savers em formato de salva vidas. Tudo era diferente,mágico e objeto de desejo vendidos também nas filas que se formavam.
O destaque era o gigante Cine Vitória que foi o nosso Chinese Theater tão louvado pelo cronista da Tribuna, meu tio, o decano dos críticos de cinema Ernani Gomes Correia, sempre impecável em sua inseparável capa de gabardine italiano e que ciceroneou Janet Leigh e Karl Malden depois de um festival organizado por ele e os colegas jornalistas , com direito a um jantar na Confeitaria Iguaçu da família Mehl.
Ernani frequentava Nova Iorque em uma época em que poucos o faziam, década de 60, e por lá indo aos teatros e cinemas acabou se aproximando de seus ídolos Marlon Brando e Joan Crawford, rival de Bette Davis , as duas vencedoras do Oscar, quando a premiação era mais séria.
Quem diria que eu que coloquei terno e gravata aos 16 anos para ver Janet Leigh ao vivo no Festival de Cinema…Também não pensei que iria ver em 2023, bem depois de meio século, a filha Jamie Lee Curtis recebendo a estatueta na transmissão do Oscar.
E quem imaginaria também que os grandes cinemas seriam primeiro transformados em bingos, depois em igrejas mercenárias ou estacionamentos? Deles restaram só fotos e cartazes desbotados como se fossem figurinhas coladas para sempre nas páginas do álbum de minha alma-casa de memórias -e de tantas perdas, salvo apenas agora as lembranças.
O TERCEIRO ATO
Tantos foram os mortos que já procurei desesperadamente. Desisti e não procuro mais .
Nem mais esperando inutilmente que um dia renasçam ou desmorram em outra vida para me fazer companhia, uma inútil licença poética ,
Não sei.
Sou eu que agora tenho a senha , como é natural , em algum momento deverei partir, sem protestos ou tristezas e minhas cinzas ficarão aqui por Curitiba à sombra dos ciprestes , das alamedas dos chorões ou dispersas por onde o vento as levarem como um sopro de adeus.
Uma parte delas serão espalhadas no mar antigo e lúdico de minha infância na praia de Matinhos onde está metade do meu coração.
Mas procuro agora é a coragem de encontrar ainda os vivos e a coragem de gritar bem alto quanto eu os amo e que a vida seria impossível sem cada um dos que restaram e dos que vieram depois.
E às vezes surpreendo e desconserto os amigos como o Zé Beto – Te amo cara.
E assim, já que o tempo não volta mesmo e as pessoas não se desencantam, fico com a alternativa única de que falava o poeta Rylke, viver apenas o que resta, mas com toda a plenitude em minhas causas e onde exista amorosidade.
Amparado com a esperança demencial a que se referia sempre o magnífico escritor argentino Ernesto Sábato: “ uma esperança do verbo esperar e de ter conseguido encontrar o sentido da vida que imaginei um dia”.
Outra quimera , das muitas que formam esse promontório de ilusões que nos importaram tanto e o tempo se encarregou de esvanecer.
Portanto, “ Viver tentando compreender tudo como um recomeço e não um fim de linha pois a vida é o sonho de ontem que não retornará”, como disse o poeta Gibran Kalil Gibran.
Então proponho me convidar e ao raro e indulgente leitor para as palavras que roubei :
“A aventura da interminável gravidez do mundo, onde todas as manhãs, apesar de tanta desesperança, há um radiante parto de luz e a rara perspectiva de um esperado reencontro com amores, ilusões e seres, que apesar de perdidos para sempre ainda habitam em cada um de nós”( Cardenal)
Encontrar o que o destino trouxe sem nos consultar ou ouvir, e que e de quando em quando emerge
Seja como miragem ou ilusão para nos aliviar e consolar.
A vida é o sonho de ontem que sonhamos sempre, não sei mesmo se haverá depois.
Somos sobreviventes dos tempos mais estranhos e sombrios por tantas décadas e guerras que nunca cessam .
A mais recente, a da pandemia, a dos funerais em massa, de doentes isolados, solitários e amargurados que partiram e foram meus companheiros nos leitos hospitalares de onde ressurgi outa vez.
As despedidas mais herméticas sem cerimônias, boa parte de iludidos ou desassistidos . vítimas do negacionismo e da afronta à ciência .
Tudo que narrei ocorreu como em um sonho de uma única noite .
Mas foram mais de sete décadas e sigo com minha persistente antiguidade nesta cidade de meus tombadilhos , naufrágios e ressuscitares. E imenso e inesgotável amor e devoção por Curitiba .
Cheguei em 1969, vindo de Pato Branco. Não tive a trajetória como a do escriba mas lembranças também muito boas. Vários lugares frequentei com meu pai tios e amigos. Obrigado pelas recordações.
Excelentes memórias! Adoro ler os textos seus, JM! Esperando seu livro de “recordações “!!!
Uma crônica para guardar.
Parabéns pelo texto.
Os lugares e o que fazíamos neles são a materialização na memória de nossa juventude. São símbolos daquilo que vivemos e do que fomos, como imagens fragmentadas, costuradas no fio que chega até quem somos agora. Também tenho essa nostalgia de outro tempo e outros lugares, que vez ou outra é aguçada por um som, um cheiro, pelo lusco-fusco da madrugada ou pela temperatura do ar da manhã. Mas descobri que mais do que dos lugares, é saudade de mim.
Lendo suas belíssimas reflexões pessoais sobre a nossa querida Curitiba, sinto-me privilegiada em receber essa bela postagem.
Destaco em suas lembranças, muitas que eu também vivi, só que sem tantas aventuras e sim ingenuinamente pois como menina sempre estava com meus pais.
Aos domingos íamos nas confeitarias centrais, aos cinemas, ao passeio público e outro foram momentos inesquecíveis!
Desculpas pois voei um pouco…
Quero parabenizá-lo pelo magnífico trabalho e vou repassar para amigos que gostam de artigos cultos e relatos verdadeiros.
Obrigada amigo José Maria Correia.
Lindo e saudoso texto que nos reporta a tantos momentos vividos com alegria , outros nem tanto mas fazem parte das nossas histórias e sentidas de diferentes formas por cada um de nós … gratidão por ter me proporcionado a volta ao passado e poder dizer nada foi em vão tudo isso construiu a pessoa que sou hoje …
Parabéns Curitiba ! Vc foi tudo isso e será muito mais em nossas vidas e para as futuras gerações !
Morava na Comendador Araújo.
E quando atravessávamos a Praça Osório , encontrávamos o Shopping da Rua XV.
Indescritível.
Belo texto.
Saudades dessas sete décadas.
Porém, éramos felizes e Sabíamos.
“Curitiba, do bairro chique do Batel, que lá do alto se vê, tem-se a impressão de estar vivendo no céu, Curitiba …..”
Obrigado Curitiba.
Thadeu
Memórias do que eu conheci nos anos 60, eu criança com 9 anos, chegando do oeste catarinense numa Curitiba que me parecia uma metrópole, mas em verdade era quase uma cidade do interior. Ainda transitavam pequenas charretes de entregas de mercadorias , nas pensões e bares! Era muito romântica🌻💐❤️
Magnífico texto. Não passei minha infância e juventude em Curitiba , mas a medida que lia ia lembrando dos amigos, dos bares e das noites em Florianópolis. Foi como um roteiro para minha memória.
Obrigado Zé Maria.
Que maravilha de texto, como sempre são os escritos do Dr. José Maria Correia. Também adoro suas crônicas e aguardo ansioso seu livro de “recordações”. Parabéns.
Excelente texto .
Alguém já disse que ” a reminiscência é a força do resgatar a memória do passado e fazê-la perdurar por toda a vida, lev ando-nos à infância e adolescência “.
Parabéns, querido amigo !
Recordei-me de versos de Gonçalves Dias em I-JUCA-PIRAMA, referindo-se ao velho pajé:
E à noite nas tabas, se alguém duvidava do que ele contava, tornava prudente : ” Meninos, eu vi !”
Lembro de tudo
Grande Zé Maria você conseguiu fazer eu retornar ao final dos anos 50 quando as filas de cinema também eram atração por ver as meninas sair da sessão anterior com lágrimas nos olhos após assistir os grandes dramalhões.
Abraço fraterno do Walter
Olá Tindo, com veia ímpar, você condensou com maestria toda uma vida em nossa amada Curitiba. Leio seu artigo ao som da Second Waltz do mágico Strauss e as memórias retornam com força. Beijo no coração!