por Célio Heitor Guimarães
Minha mulher era normalista, uma profissão tão aviltada e maltratada pelo poder público que nem existe mais. No entanto, “vestida de azul e branco, trazendo um sorriso franco no rostinho encantador”, como registrou o poeta, Cleonice graduou-se no Instituto de Educação do Paraná e foi aluna de, entre outros mestres ilustres, Helena Kolody, nome dado, aliás, à turma de professorandos de 1959.
Por mais de 25 anos, foi regente de classe nos então grupos escolares Attico Eusébio da Rocha (Vila Lindoia), Barão do Rio Branco e Professor Cleto, transformando meninos e meninas em cidadãos, alfabetizando-os, orientando-os e transmitindo-lhes conhecimento.
Anos depois, era comum ser festejada na rua quando encontrava no caminho ex-alunos, alguns já então de cabelos brancos, muitos dos quais exercendo elevados cargos na administração pública.
Depois de 25 anos de atividade constante, Cleonice conquistou o direito à aposentadoria e foi para casa orgulhosa por haver cumprido o seu dever. Participou de seminários de aperfeiçoamento didático e manteve-se atuante até o final da carreira. Não raras vezes, levava de casa giz e apagadores de quadro negro, inexistentes na sala de aula. Costumava também doar material para alunos mais carentes.
Aí, o Estado-patrão dispensou-a da atividade, por tempo de serviço, conferindo-lhe os direitos que a lei determinava. Em termos de valores, convertido aos dias de hoje, pouco mais de mil reais. Em janeiro deste ano recebeu a derradeira remuneração: exatos R$ 2.712,84 líquidos. Ninguém enrubesceu na Secretaria de Estado da Educação nem no Palácio Iguaçu, atualmente ocupado por em roedor menor (em todos os sentidos), que se proclama, nos constantes espirros publicitários, trabalhador e cuidador. No que e de que, não se sabe.
Alguns daqueles ex-alunos que Cleonice alfabetizou, orientou e transmitiu conhecimento e amor, hoje abrigados debaixo da toga no Poder Judiciário e Ministério Público, ou nos poderes Legislativo e Executivo, embolsam no final do mês, graças a manobras que beiram a malandragem, estipêndios que variam de R$ 60 a R$ 90 mil e não se submetem ao teto salarial estipulado na Constituição Federal. Fora quantias retroativas de direitos (!) autoconcedidos, na forma de “verba indenizatória” e, por isso, também isentos do pagamento de previdência e imposto de renda.
No Congresso Nacional tramita projeto de lei que confere aos magistrados (e, por decorrência, aos membros do Ministério Público e assemelhados) o retorno dos quinquênios (gratificação de 5% do salário a cada cinco anos), vantagem que fora incorporada pelos subsídios, que substituíram os salários então existentes. A recaptura do mimo ainda não foi aprovada pelo Legislativo nem sancionada pelo Executivo, mas há Estados em que o Judiciário já a incluiu nas folhas de pagamento (com efeito retroativo).
Há algo errado nessa conjuntura. Uma evidente inversão de valores. Enquanto desembargadores, juízes, procuradores e promotores da Justiça, delegados de polícia, conselheiros do Tribunal de Contas, governadores, deputados e senadores estão recebendo ganhos de pouco mais de R$ 46 mil, fora o “alho”, que aqui quer dizer o “por fora” sem o mau sentido, ou seja, as vantagens e/ou estipêndios indiretos, como auxílio-moradia, auxílio-alimentação, auxílio-transporte, auxílio-saúde, auxílio-trabalho, auxílio-presença, verba de gabinete, verba de representação, verba indenizatória e o diabo que o parta, com totais que ultrapassam os R$ 100 mil… Enquanto isso, quanto ganham aqueles que lhes ensinaram o beabá e pavimentaram os seus caminhos iniciais da vida?
Dá vergonha responder. Segundo o professor Google, “o piso salarial dos professores de educação infantil e ensino fundamental até o 5º ano para o período de 2024 a 2025 é de R$ 1.948,17 para uma jornada de 22 horas semanais”. No Paraná, segundo a mesma fonte, “em fevereiro de 2025, o piso salarial dos professores da educação básica era de R$ 4.420 para uma jornada de 40 horas semanais”.
Não é verdade. Muitos professores continuam ganhando menos. Veja-se o caso da minha mulher. E, além dela, há muitos casos semelhantes.
A verdade verdadeira é que, sem os humilhados e mal remunerados mestres, não haveriam desembargadores, procuradores, delegados, conselheiros do TC, deputados, senadores, executivos, advogados, engenheiros, decoradores, médicos etc.
Alguma coisa está errada aí, repito. Professor, sobretudo o do ensino básico, fundamental ou seja lá a denominação que tenha hoje, não é uma atividade importante. É essencial. É o alicerce da civilização. Sem ele o mundo não existiria.