17:47É do José Régio!

Sobre a frase atribuída a Antônio Maria (Não sei por onde vou. Não sei para onde vou . Sei que não vou por aí.) hoje aqui publicada, um amigo do blog, mais que bem informado, enviou a seguinte correção, que vale pelo aprendizado:

Me desculpe, mas não resisto. A frase atribuída a Antônio Maria é, na verdade, o trecho final do poema Cântico (Cântigo, em Portugal) Negro, do portuga José Régio. O poema é recitado pelo Paulo Gracindo no show Brasileiro, profissão: esperança, homenagem a Dolores Duran e Antônio Maria, com ele e Clara Nunes (maravilhosa!!!) que você não deve ter assistido no Guairão, pois foi em 1975. Acho que ouviu o disco e talvez tenha ido ao show em SP. Uma viagem, né? No espetáculo, gravado ao vivo, Gracindo fala “José Régio” antes de declamar um dos mais belos poemas em qualquer língua, mas isso foi mal captado pelo microfone dele, e ele falou baixo, e quase não se ouve nada no disco. Se aumentar o volume e prestar atenção, até dá pra ouvir, mas tem que adivinhar, né?
Consta que o poema foi enxertado por sugestão do próprio Paulo Gracindo, o que acredito.
Cântico Negro está no Youtube também na bela interpretação do nosso coleguinha Ulisses Iarochinski, que, acho, vale a pena você ouvir e publicar. No YT há também interpretação de brasileiros e portugueses. Cada um com seu jeito.
Eu estava no show, tive ou tenho o LP e o poema do Régio é um dos meus quatro ou cinco favoritos. Dei uma de Gracindo e interpretei o Cântico num seminário de poesia no curso de letras da UFPR, em que me formei no ano passado.

O poema:

Cântigo Negro/ Cântico Negro

“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus [Gracindo diz nos meus olhos], ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à [no original, da] minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para [Gracindo: pra] onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio (1899 – 1969)

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