17:05A melodia sonegada

por Mário Montanha Teixeira Filho

No início de 1979, eu passeava pelas ruas do centro da cidade, sozinho, e admirava o movimento cotidiano, os rostos das pessoas, as bancas de jornal e muitas outras coisas que deixaram de existir. Havia lojas de discos que ofereciam seus produtos, com caixas de som nas portas de entrada, a reproduzir algumas das músicas preferidas do grande público. Foi quando uma vibração desconhecida e ao mesmo tempo familiar me fez reduzir a pressa, na tentativa de compreender o que era aquilo, o violão solitário e uma voz que cantava versos fortes, repetidos por milhares de outras vozes.

Parei, ocupado com o quebra-cabeça que se apresentava, quando um casal, os dois mais velhos do que eu, passou perto de mim. “É o Vandré”, disse a mulher. Em seguida, eles entraram na loja, eu logo atrás, fizeram uma consulta breve à atendente e saíram com um compacto que estampava na capa a foto do menestrel banido e o seu violão, camiseta vermelha e um microfone perto da boca. O pequeno disco trazia a gravação de “Pra não dizer que não falei de flores (Caminhando)”, hino que desafiou a ditadura militar num festival de canção e que foi proibido pelos donos do poder em 1968. Passados pouco mais de dez anos daquele episódio, em 13 de dezembro de 1978, o AI-5, instrumento jurídico que deu ao terrorismo de Estado uma legalidade bizarra, foi revogado. Talvez animada pelo fim da norma de exceção, a indústria fonográfica revirou os seus arquivos e logo tratou de colocar à venda o registro de Geraldo Vandré no Maracanãzinho, ele e a multidão convocada a lutar contra soldados armados, “amados ou não”.

Comprei o meu disco com a mesma sofreguidão do casal que eu segui até a loja. Foi bom, pois, ao contrário do que se poderia imaginar, a música não estava – e nunca foi – formalmente liberada pela censura. Tanto é que, poucos meses depois daquele dia, a polícia apreendeu os discos, que ficaram indisponíveis até que a realidade do País, de luta por anistia a presos políticos e repúdio ao autoritarismo, sepultasse a proibição. Ainda em 1979, a cantora Simone seria a primeira a regravar “Caminhando”, coisa que vários artistas fizeram nos anos seguintes.

Sempre gostei da obra de Geraldo Vandré, profunda, triste e lírica. Na minha mocidade, colecionei discos e reportagens sobre o compositor, e me frustrei por nunca ter conseguido a gravação interditada. “Pra não dizer que não falei de flores” era, para mim, um mistério, como a figura de Geraldo Vandré e seus dilemas artísticos e políticos, e sua complexidade. Tenho presentes na memória, com absoluta nitidez, momentos importantes dos festivais dos anos sessenta. Lembro-me de Elis Regina de braços abertos, a voz de “Arrastão”, lembro-me de Chico e “A banda”, de Edu Lobo, dos Mutantes, de Gil, de Caetano, de Marília Medalha, de Paulinho da Viola, de Tom Zé, do Quarteto em Si, do MPB-4, de Roberto Carlos, de Jair Rodrigues e a “Disparada”, de Sérgio Ricardo, o “Beto Bom de Bola” e seu violão quebrado, das vaias, dos gritos e dos movimentos frenéticos na tela da televisão. Meus olhos de criança acompanhavam tudo aquilo com encantamento, mas a imagem de Vandré no Maracanãzinho se apagou completamente.

Passei muito tempo assim, com os versos de “Caminhando” na cabeça, sem melodia, até que a loja de discos no centro da cidade me revelasse o que havia sido sonegado à minha geração. Desfeito o mistério, a música seguiu uma trajetória hesitante, e passou a ser executada com pouco rigor histórico. Se não me engano, serviu de trilha sonora para atos malufistas e afins, e chegou a ser entoada por membros das forças armadas, com a bênção do seu autor. Na volta ao Brasil, em 1973, após cinco anos de autoexílio, Vandré construiu um personagem recluso e aparentemente contraditório. O seu retorno foi protegido por um aparato de segurança militar, que o recebeu em julho, numa operação secreta, e o “entrevistou” publicamente no 11 de setembro, data do golpe militar no Chile (onde Vandré morou antes do regresso), num aeroporto. 

Talvez seja inútil imaginar o que aconteceu entre julho e setembro de 1973, o intervalo apagado da vida de Vandré. Muitas perguntas se acumularam desde então, para que se chegasse aos dias de agora, em que a extrema direita se coloca como vítima de autoritarismos de ficção e canalhas se apropriam dos símbolos do País, da bandeira da anistia e da luta por liberdade. O que fazer? Entre a distopia neofascista do metaverso e as incongruências de uma biografia atormentada pela perseguição e pelo medo, melhor ficar com a força criadora do poeta – palavras que se juntam para enfrentar a estupidez. O resto se ajeita.

 

        

 

2 ideias sobre “A melodia sonegada

  1. Jose maria correia

    Belo texto , a brutalidade dessa época provocou o aflorar das comportamentos mais expressivas e das interpretações mais emocionadas

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