14:56Fentanil, a morte no mar morno

por Ruy Castro, na FSP

O Brasil é alertado em vão contra a ameaça do opioide que mais provoca mortes por overdose nos EUA

Nos anos 1980 e 1990, a imprensa brasileira publicou dezenas de artigos sobre a epidemia do crack em Nova York e a possibilidade de sua chegada ao país. Foram ignorados por todos os governos daqueles anos. O crack chegou primeiro a São Paulo, e só não se espalhou de saída por outras praças porque não convinha às facções que ainda tinham controle sobre elas. Não por qualquer prurido, mas por razões comerciais —o crack é barato e inviabiliza o usuário, donde era melhor continuar a vender cocaína. Mas, por razões de escrita contábil, o PCC obrigou o Comando Vermelho carioca e as facções de outros estados a incorporá-lo ao seu cardápio. Rara hoje a cidade brasileira sem pelo menos uma cracolândia.

O mesmo acontece agora com o fentanil. É um medicamento fabricado por importantes laboratórios, indispensável para tratar a dor, mas já há tempos sintetizado clandestinamente e vendido em massa para uso “recreativo”. É de fácil consumo: pode ser injetado, inalado, absorvido em adesivos ou por via oral na forma de balas, pastilhas e até pirulitos.

O fentanil “bate” quase no ato e seu efeito dura menos de uma hora, o que induz a aplicações sucessivas e leva a um risco absurdo de dependência. E que efeito é esse? Compare-o com o da morfina, seu parente mais próximo: “A morfina espalha uma onda de relaxamento como se descolasse os músculos dos ossos. Você se sente flutuando sem fronteiras, como se estivesse imerso num mar morno”.

Essa romântica descrição, que poderia se aplicar também à heroína, é do escritor americano William Burroughs, autor de “O Almoço Nu” e entusiasta das drogas. Pois o fentanil é 50 vezes mais forte que a heroína e 100 vezes mais que a morfina.

Desde 2018, o fentanil já é o campeão em mortes por overdose nos EUA. Não faltam artigos na imprensa brasileira alertando sobre essa ameaça. Mas, com o histórico desinteresse de nossos governos de qualquer cor política pela prevenção às drogas, logo estaremos também contando as nossas baixas no mar morno.

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