por Mário Montanha Teixeira Filho
A desocupação do Pinheirinho completou treze anos neste 22 de janeiro de 2025. Foi em São José dos Campos, no Vale do Paraíba, a 80 km de São Paulo, que oito mil pessoas, moradoras de num bairro localizado na Zona Sul da cidade, tiveram suas casas destruídas por policiais convocados para agir sob o comando da Presidência do Tribunal de Justiça. Havia, então, duas ordens judiciais conflitantes. Uma, da 6ª Vara Cível local, de concessão de liminar de reintegração de posse à massa falida de uma empresa pertencente a Nagi Nahas, investidor acusado de crimes contra o sistema financeiro do país, e outra, da Justiça Federal, que impedia o despejo. Venceu a primeira tese, que atribui caráter absoluto à propriedade privada, base para a repressão à luta coletiva pelo direito à moradia. A enorme crise humanitária provocada pela institucionalidade é retratada no meu livro “Desocupação do Pinheirinho: a Justiça tem lado” (Editorial Casa, 2023). Seguem algumas observações extraídas do primeiro capítulo.
- Fruto do déficit de habitação nas grandes cidades, o Pinheirinho acompanhou as modificações estruturais dos bairros de São José dos Campos verificadas no curso de pelo menos cinco décadas. O acampamento, localizado na Zona Sul, rapidamente se integrou às comunidades vizinhas, urbanizando-se e aumentando a expectativa de se transformar em área legalizada. Ao se deslocar para a esfera das demandas judiciais, a disputa por aquele território revelou como funciona o Poder Judiciário no Brasil, qual é a essência do direito e como se identifica o conteúdo “de classe” das leis impostas pelo Estado.
- Em artigo publicado no jornal “Folha de S. Paulo” (Pinheirinho: ideologia e fatos, 29 fev. 2012. Tendências/Debates, Primeiro Caderno, p. A.3), o juiz Rodrigo Capez, então assessor da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao afirmar a legitimidade das decisões que culminaram com o despejo, ressaltou que “a Constituição prevê o direito à moradia e também o direito de propriedade”. Essa formulação parte da ideia de que os dois institutos, por estarem inscritos no Capítulo I do Título I da Constituição Federal, que consagra os “direitos e garantias fundamentais” e os “direitos e deveres individuais e coletivos”, ocupam o mesmo grau hierárquico no sistema normativo. A questão, todavia, é muito mais complexa. Pode-se afirmar, sem erro, que a Constituição protege, em seu artigo 5º, tanto a moradia quanto a propriedade. Acontece que o inciso XXIII, que diz que “a propriedade atenderá a sua função social”, estabelece uma restrição que não alcança o direito à moradia.
- Ainda que se argumente que os direitos à moradia e de propriedade se equivalem, como fez o juiz Capez, em algum momento o julgador, para embasar a ordem judicial favorável aos que se diziam donos do terreno do Pinheirinho, se viu na contingência de emitir um juízo de valor – ou seja, fez uma eleição impregnada de elementos subjetivos. Se o direito, está subordinado a interpretações, a opção “transformadora”, no caso, seria interpretar a norma de acordo com um processo histórico que tem a sociedade como centro. Mas o despacho de reintegração, aliado à maneira como foi executado, incorporou uma escolha que ignora as restrições constitucionais ao direito de propriedade, prestigiando um formalismo cujo alcance é reduzido à “vida” documentada no processo.
- A Justiça de São Paulo anunciou uma decisão técnica, amparada nos dogmas da completude, do abstracionismo e da coerência do sistema legal. Ao mesmo tempo, quando confrontada com despachos da Justiça Federal, adotou uma postura claramente política, que ignorou a existência de um conflito de competência que marcava a profundidade da disputa e impunha o adiamento da solução de mérito, tudo para permitir a investida policial, um ato precipitado diante das tensões que rondavam a desocupação.
- Os acontecimentos do Pinheirinho constituem objeto de investigação importante, que passa pelo estudo dos detalhes jurídicos que o envolvem, mas não se limita a ele. Pelo contrário, o significado extraído dos documentos que formam os autos de falência da Selecta e da ação de reintegração de posse é essencialmente ideológico, e mostra que a propriedade privada, na estrutura de poder do Estado brasileiro, prevalece como direito irrestrito e absoluto. Esse entendimento foi reproduzido por agentes do Poder Judiciário – primeiro, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que sustentou uma decisão baseada na interpretação literal e assistemática da lei; depois, pela Justiça Federal, que silenciou diante do fato consumado da desocupação feita à revelia dos pronunciamentos de alguns de seus juízes.
- Tudo isso serviu para mostrar a parcialidade da máquina judiciária – e da cúpula do Tribunal de Justiça de São Paulo, especificamente. Esta, empenhada em executar o despacho de despejo da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, ignorou a existência de decisões conflitantes proferidas pela Justiça Federal. Agiu administrativamente em defesa do grupo que se colocava como titular do domínio da área em litígio, numa interpretação oportunista da lei.
- A constatação que fica é evidente: em situações de conflitos de terra, o Poder Judiciário tende a se submeter a pressões econômicas e abandonar a neutralidade recomendada pelo formalismo dominante no discurso e nas decisões dos seus agentes. Tem-se, por conseguinte, que: a) o debate em torno do Pinheirinho é fundamentalmente político, uma vez que as controvérsias técnico-jurídicas que o caso suscitou deveriam encontrar solução na ordem jurídica em vigor, que contém normas de proteção de direitos que, se fossem aplicadas, eliminariam a hipótese de cumprimento do despacho de reintegração de posse; e b) o desfecho dado ao processo mostra a fragilidade institucional do Estado brasileiro, cujas forças controladoras das esferas política, social e econômica dispõem de mecanismos de persuasão que impedem ou dificultam a efetividade de direitos (individuais e coletivos) incorporados pela Constituição Federal de 1988.